Economia de Francisco — Diário de Bordo #2

O segundo dia deste encontro digital contou com a apresentação ao mundo do que em Portugal se tem vindo a fazer nesta área.

O segundo dia deste encontro digital contou com a apresentação ao mundo do que em Portugal se tem vindo a fazer nesta área.

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Foi cheio o segundo dia da Economia de Francisco, com muitas propostas diferentes por onde escolher. Arrancou com uma chamada de atenção para a dificuldade que os ex-reclusos encontram na sua reintegração social, depois de cumprirem as suas penas. Também estes, tantas vezes marginalizados, têm de ser cuidados pela sociedade. A este respeito, vale a pena olhar para o trabalho que a APAC está a fazer em Portugal.

A primeira conferência que acompanhei foi sobre “Generativity, Relational Goods and Civil Economy”, onde se propôs a transição para um modelo económico fundado na generatividade, em contraste com o modelo atual focado na produção e consumo e orientado para a quantidade. O modelo generativo está mais ligado à dinâmica da vida: desejar, dar à luz, acompanhar ou cuidar e deixar ir. No fundo, é o que fazem os pais com os filhos. E que diferente seria a economia se estivesse mais voltada para gerar vida!

O momento mais esperado do dia era talvez a conversa com Muhammad Yunus, Nobel da Paz e pai do microcrédito, sobre “Finance and Humanity: a road towards an integral ecology”. Yunus  mencionou várias vezes a insuficiência do homo economicus (racional, que maximiza a utilidade e procura o próprio interesse), defendendo que o homem não é guiado apenas pelo interesse pessoal, mas também por interesses comuns. Na conferência anterior, o homem tinha sido apresentado como um buscador de sentido, para fazer florescer a sua vida. O termo foi usado no sentido aristotélico, em que florescer significa tornar-se um homem virtuoso (num artigo da Companhia dos Filósofos, explorei mais detalhadamente esta ideia).

Yunus mostrou-se muito crítico do sistema financeiro atual: para ele, o mundo das finanças é hoje um veículo para concentração de riqueza e tem como único fim gerar lucro. Nesta linha, questionou qual o verdadeiro objetivo das grandes farmacêuticas que competem por uma vacina contra a Covid-19. Segundo Yunus, estas empresas estão mais preocupadas com os seus proveitos financeiros do que com a saúde pública. Contudo, a sua atenção voltou-se também para os Estados ricos, que acusou de estarem a comprar mais vacinas do que as que necessitam e conseguem administrar, impedindo, assim, o acesso dos países pobres.

Yunus mostrou-se muito crítico do sistema financeiro atual: para ele, o mundo das finanças é hoje um veículo para concentração de riqueza e tem como único fim gerar lucro.

Repetidamente, Yunus frisou que as finanças são apenas um meio, mas que é crucial termos bem presente o fim, o propósito que queremos alcançar. E este deve ser bom. Isto aplica-se às empresas, aos bancos e aos reguladores.

E também a nós. Cada um de nós pode moldar o sistema financeiro, defendeu Yunus, se perguntarmos ao nosso banco o que anda a fazer com o nosso dinheiro e exigirmos que faça investimentos responsáveis. O dinheiro que os bancos investem é o dinheiro que lá depositamos. Que negócios estão os bancos a financiar? Que negócios queremos que sejam financiados com o nosso dinheiro? Este pode ser um bom critério para escolher o nosso banco.

Yunus falou ainda do microcrédito, modelo que popularizou globalmente, e marcou de forma clara os critérios que segue no uso deste sistema: “se os bancos emprestam aos ricos, nós emprestamos aos pobres; se vão às cidades, nós vamos às aldeias; se vão aos homens, nós vamos às mulheres; se pedem colaterais, nós não pedimos”. Dito de outra forma, o critério é ir às periferias existenciais, onde mais ninguém vai. No séc. XV, os franciscanos fizeram o mesmo e criaram os primeiros bancos sociais, dirigidos aos pobres que não tinham acesso aos bancos comuns. Eram os chamados Montes Pios.

Ainda sobre esta conferência, gostava de salientar uma proposta apresentada pelos participantes da Village (grupo de trabalho) Finance and Humanity, da Economia de Francisco. Falaram eles num modelo das virtudes cardeais para avaliar a sustentabilidade do setor financeiro e que, penso eu, merece ser mais explorado e se poderia aplicar a outros setores. Esta é uma proposta original, saída do trabalho desenvolvido nos últimos meses por esta Village:

  • Prudência: Comportamento de mercado e capital responsáveis
  • Temperança: Limites à especulação e ao comportamento rentista
  • Fortaleza: Estabilidade e resiliência financeira
  • Justiça: Inclusão financeira e dignidade económicaComento mais brevemente a última conferência da tarde a que assisti, “An economy of abundance: how to foster bottom-up development?”, com Vandana Shiva, ativista ambiental e fundadora da Navdanya, ONG indiana que promove a biodiversidade e os direitos dos pequenos agricultores. Para ela, o melhor princípio económico é o de S. Francisco de Assis — “é dando que se recebe” — e é crucial que voltemos a estar próximos da terra e valorizemos a alimentação como algo sagrado.

Ao longo do dia, foi havendo ainda um toque feminino e salientou-se a importância que as mulheres desempenham no nosso mundo, embora sejam tantas vezes desvalorizadas. As mulheres dão vida, cuidam, são criativas e devem ter mais voz na sociedade. Neste contexto, S. Clara de Assis foi apresentada como modelo de alguém que confia no Senhor e, porque confiou no seu Deus, permitiu que a abundância de dons não cessasse e chegasse aos que a rodeavam, gerando vida à sua volta. Para o ilustrar, foi recordado o milagre da multiplicação do pão: num dia em que só havia meio pão no convento, Clara mandou cortar 50 fatias, para dar às irmãs. A irmã despenseira desconfiou do pedido de S. Clara, mas perante a sua insistência e confiança em Deus, cortou o pão, que chegou para todas.

Talvez não concordemos com tudo aquilo que ouvimos, mas estamos unidos pela mesma causa de gerar uma economia mais humana e fraterna e, assim sendo, abrem-se portas ao diálogo.

No fim da tarde, começou uma maratona à volta do mundo com pequenos vídeos preparados por vários países e que apenas termina no sábado. Portugal abriu a maratona e aproveitou para mostrar o que tem sido feito por cá nos últimos meses.

Houve ainda tempo para mais um encontro entre portugueses, de balanço do dia. Aí, alguém salientava a pluralidade que se vê na Economia de Francisco. Talvez não concordemos com tudo aquilo que ouvimos, mas estamos unidos pela mesma causa de gerar uma economia mais humana e fraterna e, assim sendo, abrem-se portas ao diálogo.

A Economia de Francisco tem ainda mais um dia pela frente, que contará com a presença do Papa Francisco. Até amanhã!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.