Uma das experiências mais marcantes no meu noviciado foi a peregrinação em pobreza. Dez dias a caminhar em direção a Fátima, desde Viça Viçosa, juntamente com dois companheiros. Não levávamos connosco nem dinheiro nem alimentos. Queríamos depender da providência de Deus e da generosidade daqueles que nos abrissem as portas das suas casas. Ao fim do dia, ao entramos em alguma povoação, íamos batendo a várias portas, pedindo guarida. Foram várias as noites em que fomos acolhidos por famílias que não conhecíamos, mas que arriscaram abrir as portas das suas casas para acolher três estranhos que se apresentavam como peregrinos. Lembro-me que numa das noites fomos acolhidos por um casal, com dois filhos ainda pequeninos. Sentaram-nos à sua mesa e serviram-nos uma refeição, prepararam um local para podermos dormir e, no dia seguinte, quando despertamos, já tinham saído para o trabalho. Tinham-nos deixado sozinhos na sua casa, mesmo sem saberem quem éramos. Confiaram na nossa palavra e acolheram-nos o melhor que puderam, pondo ao nosso dispor o melhor que tinham. Ao jantar, enquanto conversávamos, fui-me perguntando interiormente: se estivesse na situação daquele casal, abriria a porta da minha casa, para acolher três peregrinos que não conhecia de lado nenhum? A minha resposta mais honesta é esta: não, não abriria a porta de minha casa!
Celebramos hoje o nascimento de Jesus. Conhecemos bem a história, porque a escutamos muitas vezes. Justamente por isso, há o risco de já não deixarmos que ela nos desinstale. Naquela noite, há dois mil anos, José e Maria, que estava prestes a dar à luz, bateram às portas de Belém para pedir guarida. Ninguém lhes abriu a porta. Claro que é fácil encontrar uma desculpa perfeitamente plausível: por aqueles dias realizava-se um recenseamento e as hospedarias estavam cheias; Belém tinha sido invadida por gente estranha e nem todos seriam bem-intencionados… Não é difícil encontrar justificações perfeitamente aceitáveis para não abrir a porta. Talvez esta seja a decisão mais prudente. E, no entanto, há uma pergunta que fica a ressoar e a que não nos podemos esquivar: e eu, abria a porta?
Celebramos hoje o nascimento de Jesus. Conhecemos bem a história, porque a escutamos muitas vezes. Justamente por isso, há o risco de já não deixarmos que ela nos desinstale.
A história do nascimento de Jesus é profundamente desconcertante. Deus veio ao encontro da humanidade, para a visitar. Mas não houve quem abrisse a porta para acolher o Senhor de todas as coisas, que vem para consolar e salvar o seu povo. S. João, na passagem do Evangelho que escutamos no dia de Natal, traduz esta história desconcertante com palavras porventura mais enigmáticas: «A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam … O Verbo era a Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina. Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (Jo 1, 5; 9-11).
Para muitos de nós, no conforto das nossas casas, aconchegados pela alegria companhia dos nossos amigos e familiares e enternecido pela beleza dos nossos presépios, talvez fosse fácil dizer que sim, que abriríamos a porta a Jesus, José e Maria. Claro que sim. Afinal é o seu nascimento que estamos a celebrar. Que alegria, se Ele batesse à porta e pedisse para ficar em nossa casa.
Vem ao encontro de cada homem e mulher, em cada tempo e lugar. Mas vem sem avisar, revestido de fragilidade e pobreza e por isso é tão fácil não o reconhecermos. O nosso Deus é sempre surpreendente.
Claro que queremos abrir nossa casa a Jesus. Mas, bem vistas as coisas, talvez não seja assim tão óbvio. Jesus continua a bater às nossas portas. Ele é o Emanuel, o Deus connosco, que continua a visitar o Seu povo. Vem ao encontro de cada homem e mulher, em cada tempo e lugar. Mas vem sem avisar, revestido de fragilidade e pobreza e por isso é tão fácil não o reconhecermos. O nosso Deus é sempre surpreendente. Vista-nos quando e onde não esperamos e identifica-se – é esta a sua maneira de ser – com os descartados do nosso mundo. Vale a pena imaginar onde nasceria Jesus, se viesse ao nosso mundo em 2021. Quem o reconheceria? Quem se disporia a levar-lhe presentes? Quem se disporia a recebê-lo em sua casa?
A celebração do nascimento de Jesus, a Encarnação do Verbo, é uma profunda interpelação, também para os nossos tempos. Convida-nos a aguçar o nosso olhar, a despirmo-nos dos nossos preconceitos e, sobretudo, a cultivar a verdadeira hospitalidade, acolhendo os que pensam e vivem de forma diferente, os descartados, os pobres, os doentes, os que vivem nas margens… Naquela noite, não houve quem oferecesse hospitalidade a Jesus, o amável hóspede da nossa humanidade ferida. E tu, abrias a porta?
Feliz Natal!
Fotografia de Peter Herrmann – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.