“É preciso recuperar o primado das lógicas da fraternidade e solidariedade”

Tínhamos que ter uma mudança de políticas económicas, financeiras e fiscais que se preocupasse com a redistribuição da riqueza, um investimento robusto no Estado Social, na educação, saúde, habitação e protecção social dos mais pobres.

Tínhamos que ter uma mudança de políticas económicas, financeiras e fiscais que se preocupasse com a redistribuição da riqueza, um investimento robusto no Estado Social, na educação, saúde, habitação e protecção social dos mais pobres.

O Ponto SJ esteve no Algarve no dia 5 de fevereiro para conversar sobre desigualdades sociais, a propósito do Ponto de Cruz, a iniciativa que, em tempo de eleições, quer ajudar a sonhar um País para todos. Esta conversa que decorreu na Paróquia de Nossa Senhora do Amparo, Portimão, contou com a presença de Mariana Piteira Santos, presidente d direção da Equipa Sócio Caritativa da paróquia de S. Pedro, em Faro, e também ligada à Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE).

Porque é que as desigualdades sociais (pobreza, precariedade laboral, desertificação do interior, acesso à habitação e cuidados de saúde) que vemos registarem-se no resto do País são mais gritantes no Algarve? A nível sociológico, há algumas características que expliquem este retrato e porque chegamos aqui?

a) As sociedades globais em que vivemos são sociedades constituídas por fortes desigualdades sociais e por fortes contrastes sociais. O capitalismo global marcadamente neoliberal se gera inúmeras oportunidades de enriquecimento tem levado também à globalização da pobreza, de tal modo que a gigantesca crise económica de 2008 nos EUA, gerou um movimento de contestação social, inspirado nos movimentos de indignados de Espanha e na “Primavera Árabe” intitulado “Ocupy Wall Street”, em que o grande slogan de reivindicação era “Nós somos os 99%“, uma alusão às desigualdades na distribuição da riqueza e às injustiças económicas em que 1% da população tinha concentrado em si a maior parte da riqueza mundial.

Costumo dizer aos meus alunos para lerem a obra de Karl Marx “O Capital” para perceberem o mundo em que vivemos, ele que foi o grande teórico do capitalismo, da análise da exploração e da luta de classes e por outro lado, uma das obras de economia que mais sucesso fez nos últimos anos foi a obra de Thomas Piketty “O capital no século XXI”. São leituras que nos permitem perceber como a questão das desigualdades sociais, neste caso das desigualdades económicas, de riqueza e património, são centrais na organização da vida das sociedades.

b) Queria relembrar também que desde o início do século XXI, já passámos por três gigantescas crises económicas que de alguma forma afectaram brutalmente a economia mundial e as nossas vidas quotidianas. A crise económica com origem no mercado imobiliário dos EUA, que levou ao colapso da banca e que alastrou à Europa e que em Portugal levou à intervenção da TROIKA (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), com efeitos devastadores nas condições de vida dos portugueses e no Estado Social; uma pandemia global que afectou fortemente a economia e a sociedade aos mais diversos níveis e agora, mais recentemente a guerra na Ucrânia e a intensificação do conflito entre Israel e a Palestina, associado ao aumento da inflação, com reflexos fortes no aumento do custo de vida e nas perdas salariais.

É lógico que o Algarve tem as suas especificidades, desde logo por ser uma região quase totalmente dependente da actividade económica do turismo, com tudo o que isso acarreta de transformações societais na região nas últimas décadas.

c) Dito isto, é lógico que o Algarve tem as suas especificidades, desde logo por ser uma região quase totalmente dependente da actividade económica do turismo, com tudo o que isso acarreta de transformações societais na região nas últimas décadas. Desde logo, o facto de ser uma actividade marcada pela sazonalidade, muito assente em mão de obra intermitente, precária e mal remunerada, juntando-se a isso o disparar do desemprego, quando chega ao fim aquilo que tradicionalmente se chamou no Algarve a «época alta” associada ao turismo de sol e praia.

Depois é também uma região com fortes contrastes sociais entre o litoral e o interior, mais uma vez devido também ao facto da actividade económica ligada ao turismo estar localizada sobretudo no litoral e que leva a um despovoamento forte do interior da região.

O turismo no Algarve está de certa forma também na origem das desigualdades no acesso à habitação, com uma economia da habitação muito ligada a este sector de actividade e um mercado imobiliário especulativo a inflacionar o preço das casas e dirigido a uma procura nacional e internacional com elevado poder aquisitivo.

No que toca aos cuidados de saúde há enormes dificuldades e lacunas com falta de médicos em várias especialidades, que leva inclusive ao fecho de urgências em certos dias do mês, que passam a funcionar numa lógica intermitente, abre em Portimão, fecha em Faro, abre em Faro, fecha em Portimão, os casos da pediatria e da obstetrícia, são um bom exemplo.

Um enorme aumento nas últimas duas décadas do mercado privado da saúde que faz depender o acesso à saúde de quem tem dinheiro para a pagar e portanto, a região está marcada por desigualdades gritantes no acesso e nos cuidados de saúde.

O Novo Hospital do Algarve foi prometido politicamente há dezenas de anos e nem sinal dele e os doentes com cancro do Algarve vêm os seus direitos fundamentais violados com tempos de espera para cirurgias para além do legalmente permitido e uma parte deles foi empurrado para fora do país para fazer os seus tratamentos de radiocirurgia, em Espanha e serem tratados em Sevilha, numa multinacional privada da saúde, sendo quase que abandonados à sua própria sorte.

Há também as lógicas de gestão privada da economia a irradiar a gestão pública dos hospitais, que faz com que hoje falemos de “urgências e hospitais em rede”, “médicos tarefeiros”, rácios de produtividade em saúde que remetem para uma “saúde contábil e bancária”, tudo lógicas de mercado e do Novo Espírito do Capitalismo, que em meu entender não se adequam à gestão do bem público que é a saúde.

Depois há também as lógicas de gestão privada da economia a irradiar a gestão pública dos hospitais, que faz com que hoje falemos de “urgências e hospitais em rede”, “médicos tarefeiros”, rácios de produtividade em saúde que remetem para uma “saúde contábil e bancária”, tudo lógicas de mercado e do Novo Espírito do Capitalismo, que em meu entender não se adequam à gestão do bem público que é a saúde.

Como é que em concreto o princípio do bem comum, e este desejo que todos possam desenvolver-se e crescer plenamente enquanto pessoas e sociedades, tem sido o motor das políticas públicas dos últimos anos? Numa região com tantos contrastes, os interesses particulares, de cada grupo, setor, têm prevalecido no combate às desigualdades sociais? O que isso diz de nós, enquanto sociedade?

a) A sua pergunta é muito interessante e fez-me lembrar um ensaio extraordinário de um sociólogo francês, François Dubet, que se intitula “A preferência pela desigualdade: Compreender a crise das solidariedades” e em que a tese defendida por este autor é que numa sociedade altamente individualizada como é a nossa onde vivemos, assente na competição meritocrática, mesmo aqueles que, em abstracto, defendem os valores da igualdade, ao agirem ao nível das suas acções, decisões e práticas sociais, fazendo aquilo que consideram melhor para si próprios, acabam por preferir a desigualdade e contribuir para reproduzi-la.

Este autor defende que não são só as enormes desigualdades sociais, baseadas nas lógicas de opressão e exploração que levam a uma crise das solidariedades mas que também o inverso é verdadeiro, a crise das solidariedades leva à reprodução e ao incremento das desigualdades sociais.

b) Em segundo lugar, a questão das políticas públicas que levanta, tem sido uma das maiores lacunas das políticas nas últimas duas décadas em meu entender. A hiper-austeridade imposta pela Troika e que o governo de direita à época quis levar mais longe que a própria Troika, devastou o Estado Social e mais recentemente o Governo que se diz de esquerda, implementou a austeridade por outras vias, privilegiando a redução do défice orçamental e da dívida pública em detrimento das políticas públicas e do reforço do Estado Social. As famosas “contas certas” e as “cativações” foram altamente penalizantes para as condições de vida da população portuguesa.

Não é por acaso que nós vimos os professores, os médicos, os enfermeiros, os polícias, os movimentos sociais em luta pela habitação, em protestos frequentes, como já não víamos há algum tempo atrás. A inflação, com a consequente perda de poder de compra foi o detonador que fez tornar visível o descontentamento social.

Este autor defende que não são só as enormes desigualdades sociais, baseadas nas lógicas de opressão e exploração que levam a uma crise das solidariedades mas que também o inverso é verdadeiro, a crise das solidariedades leva à reprodução e ao incremento das desigualdades sociais.

Portanto, o investimento nas políticas públicas e no Estado Social são fundamentais para a melhoria da qualidade de vida das populações, para garantir o cumprimento dos direitos sociais consagrados na Constituição da República e para o funcionamento da própria democracia. O que quer dizer que a célebre canção de Sérgio Godinho, com o refrão “Só há liberdade a sério quando houver […] a paz, o pão, habitação, saúde, educação” está na ordem do dia.

Outra questão muito relevante que tem a ver com as políticas públicas é a fraca capacidade na sua implementação. Por vezes desenhamos muito boas políticas mas elas têm muita dificuldade em passar do papel à prática, nos terrenos onde a mesma deveria ser implementada.

Sobre a questão dos interesses particulares no Algarve se sobreporem ao bem comum, isso parece-me muito evidente em muitos aspectos no pessoal político da região, com as devidas excepções: – Veja-se a luta contra as portagens na Via do Infante ou o novo Hospital Central do Algarve, o tempo que já têm de reivindicações populares não satisfeitas.

Que tendências se perspetivam para o futuro? Há sinais de que estas tendências de desigualdades sociais se venham a manter? Ou os impactos das políticas públicas já fazem antever sinais de inversão? Como podemos, enquanto sociedade, ajudar a construir um futuro melhor?

a) Não estou optimista. Vivemos numa sociedade organizada a partir de um modelo económico e financeiro altamente competitivo e excludente, dentro da lógica de um turbocapitalismo quase esquizofrénico, com uma individualização do social muito exacerbada, com o recuo do papel dos colectivos sociais e dos direitos de propriedade social que protegem os indivíduos e os trabalhadores e com as lógicas do capital financeiro global a imporem-se às lógicas do bem comum.

E portanto, para mudar este estado de coisas tínhamos que ter uma mudança de políticas económicas, financeiras e fiscais que se preocupasse com a redistribuição da riqueza, um investimento robusto no Estado Social, na educação, na saúde, na habitação, na protecção social dos mais pobres e a melhoria substantiva dos salários das classes trabalhadoras.

No estado actual da questão social, num contexto de uma vulnerabilidade social de massa, talvez valesse a pena debater da possibilidade da implementação de um Rendimento Básico Universal que assegurasse a cada cidadão uma vida digna. Penso que esse é um debate por fazer em Portugal mas também ao nível da União Europeia.

Como questão importante de fundo na criação e reforço dos laços sociais, incentivar políticas de apoio à cultura e ao associativismo, a promoção de uma cidadania participativa que é muito débil em Portugal e na região do Algarve e seguir o conselho do sociólogo François Dubet que nos diz que temos necessidade de inverter a ordem dos valores saídos da Revolução Francesa. Em vez da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” o famoso tríptico passar a ser “Fraternidade, Igualdade e Liberdade”.

No Algarve, a eliminação das portagens da Via do Infante, a construção do novo Hospital Central, a diversificação da actividade económica para fazer face à monocultura do turismo, a aposta na elevação dos níveis de qualificação escolar e profissional da população activa e a aposta na inovação, no desenvolvimento tecnológico e na qualificação das empresas, onde a Universidade do Algarve terá certamente um papel importantíssimo na transferência de conhecimento para a sociedade e para as empresas, assim como a criação de uma estratégia regional de incentivos à produção local, creio que seria fundamental, entre muitas outras coisas que se poderiam fazer, para qualificar o território.

Depois, como questão importante de fundo na criação e reforço dos laços sociais, incentivar políticas de apoio à cultura e ao associativismo, a promoção de uma cidadania participativa que é muito débil em Portugal e na região do Algarve e seguir o conselho do sociólogo François Dubet que nos diz que temos necessidade de inverter a ordem dos valores saídos da Revolução Francesa. Em vez da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” o famoso tríptico passar a ser “Fraternidade, Igualdade e Liberdade”.

Recuperar o primado das lógicas da fraternidade e da solidariedade em detrimento do primado das lógicas da competição individual parece-me fundamental para construirmos uma sociedade mais inclusiva.

 

Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.