É o inferno…

Convocámos os AC/DC, Sartre, Balzac e Bernanos para nos responderem a uma questão: o que é o inferno?

Convocámos os AC/DC, Sartre, Balzac e Bernanos para nos responderem a uma questão: o que é o inferno?

1. Como mel para a boca

O riff de guitarra do grupo AC/DC é a banda sonora ideal quando saímos para o jogging matinal.

Ao ouvir, no entanto, há uns dias, a sua música mais famosa, Highway to Hell, surgiu-nos a pergunta: porquê tomar a autoestrada para o inferno? E, no fundo, o que é o inferno?

Fomos à Bíblia à procura de uma resposta…


2. Um texto bíblico

Porque o medo não é outra coisa senão a renúncia aos auxílios da razão.

Quanto menor é a segurança interior tanto mais se sente a ignorância da causa do tormento.

Eles, porém, durante aquela noite verdadeiramente insuportável, saída das profundezas do impotente Abismo, dormiam o mesmo sono.

Eram perturbados por espectros monstruosos, pelo abatimento da alma,

pois um súbito e inesperado terror os invadira.

Livro da Sabedoria de Salomão 17,11-14


3. O esclarecimento

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Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), Dulle Griet (1562), Museu Mayer van den Bergh, Antuérpia, Bélgica.

À esquerda do quadro, uma boca gigantesca, de forma humana, rodeada de monstros, representa o inferno.

O inferno designa o “lugar” de castigos para onde o homem de coração endurecido irá depois da morte. A expressão “os infernos”, no plural, designa a morada dos mortos.

De forma geral, a Bíblia quase não se pronuncia sobre o que acontece depois da morte humana. Mais especificamente, ela não nos informa sobre o que se passa nos infernos. Este vazio foi preenchido pela imaginação dos romancistas e pintores.

O próprio termo poderia chegar para nos esclarecer sobre o que aqui se pretende significar. Na sua versão grega (na Bíblia dos LXX), o texto bíblico usa a palavra “Hades“.

Debrucemo-nos sobre a sua etimologia popular…

A palavra “Hades” compõe-se de duas partes:

  • “Ha”
  • e “des”

A segunda parte da palavra – “des” – vem da raiz grega idein que significa “ver”. A primeira – “ha” – é um privativo, como “a-” em português (por exemplo, “a-fónico” significa, etimologicamente, “sem voz”).

Combinadas, as duas partes da palavra “Hades” designam “um lugar onde não se vê“, onde se está impedido de ver. Não é, por isso, surpreendente que a nossa passagem do livro da Sabedoria associe o Hades à noite, na qual a escuridão impede de ver.

Nesses momentos, o homem não dispõe mais da luz, um véu desceu sobre ele, não vê mais onde ir e perdeu todo o sentido (gosto, direcção ou significado). Este “inferno” pode atingi-lo na sua vida conjugal, na sua vida profissional, na doença, na morte de um próximo e deixá-lo abatido. No fundo desta noite, o homem não vê mais a luz divina, que ele espera gemendo.

Para os cristãos, acreditar que Cristo “desceu aos infernos” é participar nessa vitória sobre a noite do Hades e abraçar a esperança. A Luz brilhou nas trevas: a noite chegará ao seu termo e seremos iluminados pelo Sol sem ocaso.

 

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Gustave Doré, O vale das lágrimas (1883), Petit Palais, Museu das Belas-Artes de Paris, França.

4. E ainda uma palavra final…

Poderíamos concluir com o bom Jean-Paul Sartre – «o inferno são os outros» – mas pareceu-nos um pouco sombrio. Hesitamos em afirmar com Honoré de Balzac que «o inferno está cheio de boas intenções», porque não está longe da verdade. É preferível, contudo, concluir com Bernanos:

«O inferno é deixar de amar. Enquanto vivemos, podemos iludir-nos, acreditar que amamos pelas nossas próprias forças, que amamos fora de Deus. Mas assemelhamo-nos a loucos que estendem os braços para o reflexo da lua na água.»

Georges Bernanos, Diário de um Pároco de Aldeia, 1936

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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