Diário gráfico de uma colónia

"Rabo de Peixe Sabe Sonhar" é um projeto ligado aos centros universitários dos jesuítas que apoia crianças numa das vilas mais pobres da ilha de São Miguel: Rabo de Peixe. Os desenhos do P. Nuno Branco sj mostram-nos como foi esta colónia.

"Rabo de Peixe Sabe Sonhar" é um projeto ligado aos centros universitários dos jesuítas que apoia crianças numa das vilas mais pobres da ilha de São Miguel: Rabo de Peixe. Os desenhos do P. Nuno Branco sj mostram-nos como foi esta colónia.

NotaSe clicar em cada uma das imagens pode vê-las em formato de “Galeria de imagens.”, mas não deixe de ler toda a história… 

Rabo de Peixe 0

No dia 31 de julho, depois de ter celebrado na comunidade do Noviciado a festa de santo Inácio de Loiola com Eucaristia e almoço, arranquei no início da tarde para esta missão que já conheço relativamente bem: a Colónia de Férias de Rabo de Peixe que fica na costa norte da ilha de São Miguel nos Açores.

Confesso que teria preferido para este dia um tempo de recolhimento, de oração, de silêncio ou até de retiro, mas a missão pedia-me que passasse parte do dia na carrugem 4 do comboio Coimbra-Lisboa e no lugar 32F na cauda do avião Lisboa-Ponta Delgada.

 

Rabo de Peixe 1

Jantei sozinho no terminal 2 do Aeroporto de Lisboa e naquele espaço anónimo, cheio de nacionalidades e não conhecendo absolutamente ninguém, senti-me estranhamente em casa. Por instantes, lembrei-me daquela frase de um dos primeiros companheiros de Jesus, de nacionalidade espanhola, Jerónimo Nadal que terá dito muito sabiamente: “o mundo é a nossa casa”.

Sempre tive algum receio de que o mundo fosse a minha única casa, como se isto significasse de maneira definitiva que fosse de todos, mas não pertencesse a ninguém.

 

Rabo de Peixe 2

Já na Escola Básica Integrada de Água de Pau, na costa sul da ilha, lugar onde viria a realizar-se a Colónia, começaram os primeiros preparativos.

 

Rabo de Peixe 3

Esta escola fica num vale entre dois miradouros: a este, o Miradouro do Monte Santo e a norte, o Miradouro de Água de Pau.

Uma vez definido o horário da Colónia, percebi que isto iria ser duro, exigente, intenso e difícil. Desgastante fisicamente, emocionalmente e, esperaria eu, estar fresco a nível espiritual para amparar e ajudar aqueles 36 animadores. Precisaria por isso de quatro coisas: 1) ao longo do dia, lembrar-me por quem estou cá; 2) tomar um bom café pela manhã com uma caminhada diária de 15 minutos; 3) uma hora de oração diária e 4) uma sesta de 15 minutos.

 

Rabo de Peixe 4

Hoje é Domingo. Significa que tivemos Missa com 36 animadores e 96 crianças de Rabo de Peixe. Diz-me a experiência que esta Missa tanto pode correr bem, como pode ser fatal. É imprevisível!

Tivémos duas. Dividimos o grupo ao meio. A primeira correu muito mal, a segunda correu muito bem.

Ainda fiquei a pensar o que é uma Missa correr mal. Que estranho! Foi uma Missa com a crianças de Rabo de Peixe, com interrupções pelo meio, alguns palavrões, ameaças de desacatos, atenção alternada com desatenção e embora avisados com cautela, não sei se não terá havido ali inesperadas primeiras comunhões.

Nesta tarde, senti-me triste quase a preferir que Deus Nosso Senhor não tivesse sido entregue às crianças.

 

Rabo de Peixe 5 e Rabo de Peixe 6

Divididas as 96 crianças (dos 7 aos 15 anos) por três escalões consoante a faixa etária, naquela manhã passei pelos mais novos e entreguei-lhe corajosamente o meu diário gráfico. Ali, tudo poderia acontecer.

 

O João desenhou um foguetão e um astronauta e a Ana Rita uma cruz. E devolveram-me solenemente alegres!

Ao olhar para os desenhos, pensei: um dia quando nos encontrarmos no Céu, ficaremos a conhecer a verdade de uns e de outros e vocês precisam de ser amadas com a vossa verdade, a história e a vossa família.

 

Rabo de Peixe 7

Outro dia que correu mal.

“Padre Nuno tem aqui uma criança que se portou mal, não se importa de ficar com ela?” Perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. Não me respondeu. Perguntei-lhe se queria pedir desculpa. Cruzou os braços e virou a cara. Disse-lhe que poderia vir a ser castigada. Resmungou e voltou-se contra a parede.

Perguntei-lhe com humor se ia contar os azulejos da parede. E começou a contar.

Interrompi-a e disse-lhe: “Olha, vamos rezar. Vou pôr aqui uma música espanhola “Tu modo” de um jesuíta chileno Cristobal Fones e vamos rezar”. Ela ouviu a música e rezou. Escreveu num papel a oração dela, de agradecimento por estar naquela colónia e a pedir desculpa por aquilo que tinha feito.

Portou-se bem durante aquela tarde. No dia seguinte, já tinha feito mal outra vez.

 

Rabo de Peixe 7.1

Todos os dias tínhamos reunião da direção da Colónia (a Ana, o Filipe e eu) com os animadores-coordenadores dos escalões (a Maria, a Teresinha e a Kika). As reuniões e eu formamos um casal em permanente luta. O diário gráfico mantém-me útil e atento.

 

Rabo de Peixe 8

As refeições são o sarilho. Às vezes! É imprevisível. Tanto dá para ser tudo bem, como de repente há surpresas.

O almoço é carbonara. Disse-me que não queria.

Perguntei-lhe: de que é que não gostas? Do fiambre, do queijo ou dos cogumelos?

Respondeu-me ela: da massa!

 

Rabo de Peixe 9 e Rabo de Peixe 10

Levei para a Sorna – o tempo livre, ao início da tarde, para crianças brincarem – o meu diário gráfico e pu-las a desenhar. Ao contrário do que pudesse imaginar, mantiveram-se quietas e atentas. E tudo era motivo para se picarem entre eles. Até o modo como eram retratados.

 

Rabo de Peixe 11

Todos os dias tínhamos exclusivamente com os animadores, a Missa ao fim da tarde antes do jantar e à noite, antes do deitar, a oração.

Admirável o trabalho, o empenho, a entrega, o desgaste e o amor desta gente.

Terá recordado um dia Jesus aos apóstolos que “não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos, antes, por estarem os vossos nomes escritos nos céus.”

Estávamos a precisar desta alegria, mais que do aquela que viria ou não da obediência ou do respeito daquele grupo de crianças.

 

Rabo de Peixe 12

Ao fim da tarde, a Missa no miradouro. O tempo para descansarmos no Senhor, deixarmos o coração repousar, alargar o olhar e sermos alimentados por Ele.

 

Rabo de Peixe 13

Sem legenda.

 

Rabo de Peixe 14

Ao fim da tarde, pelas 17h30 as crianças regressariam a casa em dois autocarros.

 

Rabo de Peixe 15

Depois de uma Colónia de Férias em Rabo de Peixe, uma pessoa chega a casa com o coração do avesso, virado ao contrário, dilatado por Deus e tocado pelas crianças.
Chego com esta estranheza que deveria ter lá ficado. Nas lotas ou junto do porto, a escamar o peixe ou a ensinar o Pai-Nosso, a rezar no miradouro ou a levar com a bravura do mar. Mas, não é isto que Deus me pede.
Deus pede que Lhe confie as crianças e famílias daquele recanto da Ilha de São Miguel onde Deus fará agora o que não fizemos.
E agora, é tempo de descansar, agradecer, rezar porque com esta distância não posso fazer mais.

Página do Projeto Rabo de peixe

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.