Desejo(zinhos) de Ano Novo

2022 será um ano decisivo para a Igreja sinodal. Um sínodo sobre o sínodo é uma redundância deliberada que nos leva a perceber que só o diálogo e o caminhar juntos nos dão sentido, que só se é Igreja em sínodo permanente, hoje e amanhã.

2022 será um ano decisivo para a Igreja sinodal. Um sínodo sobre o sínodo é uma redundância deliberada que nos leva a perceber que só o diálogo e o caminhar juntos nos dão sentido, que só se é Igreja em sínodo permanente, hoje e amanhã.

Os típicos leitores destas palavras têm, como eu, pão na mesa, banho quente, médico a quem recorrer e tanto mais. Quem não tem estes mínimos, só pode desejar tê-los. Assim, este artigo pode fazer sentido apenas para os primeiros.

Na entrada do novo ano fazem-se balanços e balancetes, memórias e celebrações. Reinventa-se a esperança e tecem-se propósitos. Vive-se a transição do ano como se deveria viver: em festa.

O ano que termina de 2021 foi duro, talvez até mais duro que 2020. Porque o segundo murro no estômago doí mais do que o primeiro. Uma primeira pandemia tem, na vivência e na leitura, a atenuante do inesperado, a ausência de livro de instruções. As vagas seguintes são extrapoláveis dos gráficos científicos, dos ciclos virais e mutações, mas moem e levam ao grito agora continuado do “nunca mais acaba”. Este ano teve alguns fôlegos, de esperança e de liberdade, como se fossem o queijo e o fiambre de uma sanduiche, do duro pão ressequido de janeiro e dezembro, que o diabo amassou.

Para alguns foram tempos de hospital e até de morte. Para todos foi privação, cansaço, confinamento, menos toque, menos rua, menos prosperidade, mais e diferente trabalho. Também menos frenesim, menos gestos mecânicos, mais tempo em casa com outras pessoas debaixo do mesmo teto. Foram coisas intensas que a vida teima em nos ensinar: temos muito realidade a circundar-nos e tão pouco na nossa mão. Caminhamos com pés de barro numa estrada que nos é oferecida e só a fragilidade comum nos une, de facto. A demanda maior chama-se paciência.

Compreende-se que se peçam coisas novas ao novo ano (escutará ele tais pedidos?): saúde, fim de pandemia, empregos, novos amores e reconciliações. Mas, deste lado privilegiado do mundo, desejo desafiar-me a um só pedido: que eu saiba receber a novidade do Novo Ano e que me encha de alegria viver esse pedido. Se um dia eu soubesse pedir apenas esse sonho maior e sem forma, de me bastar o abraço garantido que me habita…

Mas, deste lado privilegiado do mundo, desejo desafiar-me a um só pedido: que eu saiba receber a novidade do Novo Ano e que me encha de alegria viver esse pedido.

Os propósitos são típicos desta transição do calendário. Propormo-nos a algo é desde logo uma porta de entrada na mudança. Mas, reconheçamos, tantos propósitos ficam precisamente à porta, aquém, por serem ora ingénuos, ora megalómanos, ora inalcançáveis. Faltam muitas vezes os meios realistas para os alavancar, avaliar e neles progredir para crescer. Um exemplo de propósito comum mas vago seria “tratar melhor do meu corpo”. Melhor será “fazer mais exercício”, mas, melhor ainda “correr dia-sim-dia-não quinze minutos por dia”. Da mesma forma, “escutar mais os outros” é largo de mais e convém afunilar para “telefonar a uma amigo ou familiar uma vez por semana”. Outro exemplo ainda: “não dizer sempre que sim”; terá sentido para algumas personalidades mas poderá ganhar em ser concretizado, tirando da cartola, face a qualquer solicitação, em vez de um sim automático, a mágica expressão “dá-me um tempo, vou pensar, discernir se é oportuno e responder em conformidade” (e abusar desta expressão…). Um dos propósitos mais ouvidos na catolicidade é o propósito de “rezar mais”. Poderá ser mais realista, por exemplo, “parar mais” ou, melhor ainda, “reservar solenemente dez minutos por dia, na hora, na forma e no local mais convenientes, para um espaço de silêncio”.

Talvez baste estar no aqui e no agora, atento ao que se passa, colher cada cheiro, fixar as cores da natureza, ver o rosto de quem se cruza comigo e sentir o renascimento de tantos gestos. Às vezes, eu bem sei, não há ânimo que aguente, não há inspiração no olhar, nem força na algibeira, nem esperança no caminhar. Às vezes morremos. Pois aí está o grande pedido, aí está o cerne do sonho grande, a vacina de que precisamos: acreditar que a morte – as pequenas mortes de tudo e de todos – não são a última palavra. Alguns chamam a isto Ressurreição… e saibamos nós viver para que algo ressuscite em nós: eis o mais cristão dos pedidos.

2022 será também um ano decisivo para a Igreja sinodal. Escuta-se e caminha-se a horizontalidade de uma casa comum. Um sínodo sobre o sínodo é uma redundância deliberada que nos leva a perceber que só o diálogo e o caminhar juntos nos dão sentido, que só se é Igreja em sínodo permanente, hoje e amanhã. Dar vez e voz a cada um foi o que um tal nazareno veio propor ao mundo, algo que o Concílio Vaticano II sublinhou e que será sempre o devir da Igreja que somos.

O que eu desejava desejar para 2022 era que este texto, um dia, fizesse sentido a todos porque todos tinham pão na mesa, amassado também nas minhas mãos.

Bom mesmo seria assumir este ano de 2022 como francamente Novo. E essa consideração de novidade está nas nossas mãos, para além de qualquer teste covid. Que nos bastasse a surpresa confiada de ver novas todas as coisas. Talvez este desejo maior possa ir diminuindo o tamanho do mero desejo(zinho). Talvez isto nos permita ir sendo a Paz a cada dia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.