Bab Sharqi (Porta Este ou do Oriente) é uma das sete entradas nas muralhas da antiga Damasco. Ao entrar estamos na rua chamada direita onde S. Paulo se hospedou na sua “transformadora” visita a Damasco (Act. 9, 11). Ao sair pela porta, damos com a Estrada de Al Ghouta. Este nome tornou-se familiar nos nossos noticiários e associamos a algum lugar muito longe onde se trava uma guerra sem fim e incompreensível. Para mim, é um lugar muito perto! E que bom que é estar perto!
Muitas vezes atravessei a Bab Sharqi. É um dos caminhos possíveis para ir para o centro do JRS – Jesuit Refugee Service onde estou a trabalhar, também na periferia de Damasco. Atravessar a Porta do Oriente tem para mim uma força simbólica enorme, pela associação a S. Paulo. Cada vez que a atravesso não deixo de me perguntar sobre o caminho que fiz até chegar aqui, pelo meu próprio caminho de conversão e pelo caminho que está diante de mim.
Ao fazer-me estas perguntas torno muito presente todos os acontecimentos pelos quais o Senhor me fez desejar estar aqui; e trazer, na medida das minhas limitações, conforto e esperança àqueles que parecem não ter onde encontrar. A carta do Padre Geral da Companhia de Jesus a pedir jesuítas para a missão no Médio Oriente, bem como o discernimento com o Padre Provincial e a decisão final de me oferecer têm ainda um eco muito forte nos meus amanheceres na Síria.
Quando cheguei não sabia bem o que poderia esperar desde os amanheceres aos entardeceres nesta missão. Sabia que não iria ser fácil, a começar pela língua. Fui atravessando várias portas, além da Porta do Oriente.
Atravessar a porta da aprendizagem do árabe, foi e ainda está a ser muito custosa, mas já consigo não me perder tanto nos sons e nas palavras, assim como já não me perco nas ruas de Damasco. O desafio de meter-me numa cultura e costumes tão diferentes da nossa tem sido igualmente vencido, não sem gaffes que vão colocando sorrisos aqui e ali. Aprender a viver com as dificuldades de estar num país de escassezes tem-me ajudado a redefinir uma vida em pobreza. A vida em comunidade com dois jesuítas sírios tem-me dado novos entendimentos sobre o ser jesuíta. Também o sentido de pertença à Igreja tem ganho novos contornos, na experiência de ser parte de uma menos-que-minoria entre outras minorias cristãs. Uma diversidade que poderia ser fonte de riqueza, mas que teima em isolar as minorias em ilhas débeis neste mar imenso de um modo diverso e muitas vezes hostil de acolher o mistério de Deus. Mas a grande porta que atravesso diariamente é a porta do Encontro. O encontro com as pessoas que fazem parte do pequeno imenso universo da missão do JRS na Síria.
Quando a guerra começou há sete anos, o JRS tinha pouco menos que uma dezena de colaboradores e socorria os refugiados vindos do Iraque. Foi o facto de já estar instalado que facilitou o crescimento do JRS para poder abranger as vítimas da guerra. De outro modo teria sido vedada a abertura de uma missão aqui. Nestes anos de conflito, e na medida das necessidades e dos donativos recebidos, o JRS foi abrindo, suportando (e fechando) vários projetos, desde respostas a situações de emergência, como alimentação e cuidados de saúde a projetos mais socio-educativos e de apoio psicológico a crianças e famílias. Agora, temos apenas o projeto de educação e de apoio psicológico. Com os acontecimentos últimos, volta-se a ter uma situação de emergência. Oxalá possamos voltar a dar resposta.
A ação do JRS é uma pequena gota num oceano imenso de necessidades. É uma pequena gota, mas que sacia a muitos na sua sede de esperança e fortalece os seus sonhos de paz. Eu faço parte dessa gota. É aí que me encontro: comigo mesmo, com a minha história, com os meus que longe se fazem perto, com a minha vocação à Companhia de Jesus, com o meu sacerdócio e com o que o Senhor me pede que seja.
É aí que me encontro, porque me encontro com tantos rostos e tantos corações, nas suas histórias, nos seus sofrimentos, nas suas perdas e nos desejos de reconstrução. Encontro-me com os colaboradores do JRS (uma boa centena), a maioria jovens, que reconhecem em mim e na minha simples presença uma confirmação e uma fonte de fortalecimento no seu o esforço de superação e recomeço. Encontro-me com as crianças que acolhemos diariamente, a quem foi roubada a infância e que em nós ganham memórias de beleza e de alegria, e muitos têm connosco a única refeição do dia e de vez em quando uma guloseima à qual respondem com sorrisos que adoçam os nossos dias. Encontro-me em amizade com tantos que me acolhem em suas casas e nas suas vidas, celebrando muitas vezes o mistério da união nas nossas diferenças de culturas, de vivências e de religiões.
Atravessar a porta do encontro, neste médio oriente, tem-me transformado a partir das entranhas porque mais e mais sinto que o meu coração é visitado por um Amor que me ultrapassa. Não falo de Cristo, não faço homilias (o meu árabe não chega para tanto), não dou retiros, mas a experiência de Deus Encarnado nos meus amanheceres e entardeceres levam-me a lugares que nunca pensei que pudesse algum dia conhecer.
Neste momento estamos numa espécie de pausa, por um lado por proteção, por outro por impotência, quebrada pontualmente por alguma emergência que está ao nosso alcance responder. Rezamos. Como tantos, também nós aguardamos impotentes um desfecho, sem vislumbrar qual ou quando. Também eu assisto no noticiário o que vai acontecendo, mas mais perto, muito perto; perto porque conheço as ruas, conheço e amo os que sofrem, sei os seus nomes e tenho as suas vidas no meu abraço; perto porque é ali do outro lado da Porta do Oriente.
Que estas palavras possam aproximar a cada um para estarem comigo em Bab Sharqi.
Blog do P. Gonçalo Castro Fonseca – Varekai
9 de março – Informação atuallizada pelo P. Gonçalo, aqui
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.