Seis meses depois de ter assumido o lugar de Delegado Social dos jesuítas europeus, vai-se-me tornando claro parte dos desafios sociais que marcam a vida do nosso continente, e aos quais muitas das nossas instituições e redes (a par com muitas outras) vão tentando dar resposta. Sem querer fazer uma sua enumeração exaustiva, eis alguns destes principais desafios.
O primeiro grande desafio continua a ser a guerra na Ucrânia, com os 6 milhões de deslocados internos e 8 milhões de refugiados que saíram do país, num movimento e com uma escala de destruição e morte sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Dramático continua a ser o facto de não se ver fim à vista do conflito, seja pelo reconhecimento das “anexações” das atuais autoridades de Moscovo (que faria prevalecer a “lógica da força” contra o “direito internacional”), seja por uma eventual vitória ucraniana com a expulsão do invasor russo. Infelizmente a guerra e a destruição não são exclusivos do nosso continente, e tantos outros conflitos entre estados ou civis (de Israel-Palestina ao Sudão do Sul, do Haiti a Myanmar) continuam a marcar a atualidade (não deixando o Papa Francisco de os denunciar com insistência e determinação, como há poucos dias na sua viagem a África). Na Europa tem sido sobretudo o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) a tentar dar resposta às necessidades dos refugiados ucranianos, com centros de acolhimento nos países vizinhos e a ativação das redes de instalação em muitos outros países europeus.
Na Europa tem sido sobretudo o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) a tentar dar resposta às necessidades dos refugiados ucranianos, com centros de acolhimento nos países vizinhos e a ativação das redes de instalação em muitos outros países europeus.
Um segundo desafio social liga-se ao aumento do custo de vida, devido ao aumento do custo da energia e à disrupção e escassez nas grandes linhas de distribuição de bens. Se a pandemia já tinha alterado várias das dinâmicas produtivas e de transporte comercial internacional, a guerra veio exponenciar essa dificuldade. De novo, mesmo se as dificuldades europeias não se podem comparar à falta aguda de alimento em muitos países do Sul Global, estudos referem que quase 1/4 dos europeus encontram-se em “situação financeira precária”, e entidades como os Bancos Alimentares e Caritas reportam um aumento exponencial nos pedidos de assistência por parte das famílias
Um terceiro desafio, cujos efeitos se têm rapidamente estendido, é o da crise climática. Não é novo o alerta (já em 1972 o Clube de Roma tinha escrito sobre “os limites do crescimento”), nem novos são os relatórios científicos anuais do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC). Considerados até há pouco como “alarmistas” e “desproporcionados”, vemos agora “na pele” estes efeitos anunciados (o calor extremo e os rios secos por toda a Europa no verão passado, as temperaturas anormais para esta altura do ano), e como há zonas do planeta que já se tornaram inabitáveis. É de 2015 o texto “Laudato Si´” do Papa Francisco, com o chamamento imperativo à alteração dos modelos económicos vigentes (nomeadamente no que respeita ao consumo e ao uso de combustíveis de origem fóssil) e à mudança para estilos de vida sustentáveis. Das poucas “Gretas” ativistas de há uns anos, são hoje cada vez mais os que o fazem, optando por gestos “radicais” (e ainda assim insuficientes, se não os fizermos muitos mais) como não viajar de avião ou deixar de comer carne bovina (pela produção de metano). A nível jesuíta, algumas províncias europeias têm-se destacado pelo assumir de um “plano de transição ecológica” claro e determinado, sendo que outras se implicam em ações de advocacy e desobediência civil diante da falta de cumprimento das promessas por parte dos governos.
A crise climática não altera só o clima, mas traz por arrasto muitos outros problemas, como a mudança dos ecossistemas e o impacto sobre as condições essenciais para a vida humana, nomeadamente água potável e a garantia de uma produção alimentar suficiente para todos. Estas questões da segurança alimentar e da eficiência e sustentabilidade da produção agrícola são igualmente críticas e “batem já à porta” da humanidade, embora para o europeu comum sejam ainda difíceis de imaginar (habituados como estamos às prateleiras cheias dos supermercados). Desde há anos que muitas ONGs e centros sociais (onde se incluem vários centros jesuítas em outros continentes, como o Jesuit Centre for Ecology and Development no Malawi) têm trabalhado estes temas, seja a nível de “advocacy” (p.e. lutando pela proibição de certos tipos de pesticidas) seja a nível das comunidades locais (p.e. ajudando na transição para culturas sustentáveis).
A nível jesuíta, algumas províncias europeias têm-se destacado pelo assumir de um “plano de transição ecológica” claro e determinado, sendo que outras se implicam em ações de advocacy e desobediência civil diante da falta de cumprimento das promessas por parte dos governos.
Como quinto desafio social para 2023, e numa lógica já indireta, aludiria à “Quarta revolução industrial“, o mundo novo digital que estamos a construir. “Revolução” cheia de potencialidades para unir e cuidar, tem “instrumentos” que vemos também ser usados para controlo e manipulação da informação, criação de polarizações e conflito nas sociedades, a hostilização do “outro” que é diferente (seja ele imigrante, pobre, com cor de pele inabitual, ou simplesmente defensor de outras opiniões). Não é por isso de estranhar que a própria UE tenha criado uma “task force” contra a desinformação, a partir da consciência de que a sociedade democrática, inclusiva e social é algo sempre necessitado de defesa e não vista como “dado adquirido”. Projetos escolares como o JRS Change (para compreender “por dentro” o fenómeno da imigração) ou a campanha em prol da educação universal “Silla Roja” (da ONG jesuíta espanhola Entreculturas) são bons exemplos do trabalho de sensibilização social que a nível da sociedade (e das nossas comunidades, escolas, paróquias e centros, etc.) está sempre por fazer-se.
No primeiro dia de cada ano celebra-se o Dia Internacional da Paz, e na mensagem para 2023 o Papa Francisco voltou a recordar as palavras de há uns anos, “ninguém pode salvar-se sozinho”. E continua: “não se pode ignorar o dado fundamental de que as variadas crises morais, sociais, políticas e económicas que estamos a viver encontram-se todas interligadas, e os problemas que consideramos como singulares, na realidade um é causa ou consequência do outro. […] O que se nos pede para fazer? Antes de mais nada, deixarmos mudar o coração pela emergência que estivemos a viver, ou seja, permitir que, através deste momento histórico, Deus transforme os nossos critérios habituais de interpretação do mundo e da realidade. Não podemos continuar a pensar apenas em salvaguardar o espaço dos nossos interesses pessoais ou nacionais, mas devemos repensar-nos à luz do bem comum, com um sentido comunitário, como um «nós» aberto à fraternidade universal. […] É hora de nos comprometermos todos em prol da cura da nossa sociedade e do nosso planeta, criando as bases para um mundo mais justo e pacífico, seriamente empenhado na busca dum bem que seja verdadeiramente comum”. Que assim possa ser em 2023.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.