“Há uma providência especial na queda de um pardal. A prontidão é tudo” — disse Hamlet. No dia 20 de maio deste ano comemoramos os 500 anos do ferimento de Inácio de Loyola numa batalha em Pamplona. Volvidos 500 anos, a sua ferida pode ser lida como um início feliz, atravessada por uma providência especial. Mas certamente que não foi essa a impressão imediata daquele aspirante a gentil-homem. Foi preciso ler devagar o seu acontecimento interior para, pouco a pouco, ir intuindo uma voz amorosa que o convidava à prontidão diante de uma possibilidade insuspeita.
Mas não nos adiantemos. Comecemos por olhar a história, fazer uma breve composição do lugar e dos acontecimentos. Para isso, propomos a visualização do vídeo que se segue sobre a vida de Inácio de Loyola, mestre e peregrino da escuta da vontade de Deus.
Inácio leu-se devagar porque as pessoas não se leem à pressa. Muito menos se são introvertidas, como os bascos criados no meio de profundas montanhas, densas em arvoredo. Ainda menos se se trata do irmão mais novo, com grande distância de idade dos seus irmãos; nobre num solar meio desfeito por ordem real; órfão de mãe desde cedo e criado ora pela esposa do ferreiro da casa, ora fora de casa pelo contador mor da coroa. Por consequência, também as feridas deste tipo de pessoas são para ler devagar, muito devagar. Na verdade, Inácio de Loyola fala-nos tanto de discernimento que nada nele pode ser compreendido sem a arte de discernir.
O perigo que nos ameaça é o de ficarmos a olhar para a ferida de Inácio como o néscio que se detém a olhar para a falangeta e não para a lua que o dedo aponta. Ignacio Telechea, biógrafo exímio de Inácio, alertou-nos para o facto de que, em Pamplona, o nosso santo não foi o único a ficar ferido. Feridas há muitas! Porém, nem todas são lidas e vividas de modo a tornarem-se janelas que dão para Deus — como diria o jesuíta José Antonio García. Há, portanto, que discernir a ferida e o convite que ela carrega.
Feridas há muitas! Porém, nem todas são lidas e vividas de modo a tornarem-se janelas que dão para Deus — como diria o jesuíta José Antonio García. Há, portanto, que discernir a ferida e o convite que ela carrega.
Com estas palavras o próprio Inácio narrou a experiência que veio a despoletar uma releitura da sua ferida, reconhecendo na ressonância afetiva dos acontecimentos a linguagem de Deus no seu interior: “Havia porém esta diferença: quando pensava nas coisas do mundo, deleitava-se muito; mas quando depois de cansado o deixava, achava-se seco e descontente; e quando [pensava] em ir a Jerusalém não só se consolava com tais pensamentos mas, depois de os ter deixado, continuava contente e alegre”. (Autobiografia 8) A consciência deste modo de Deus se comunicar foi gerando uma transformação progressiva em Inácio, de tal modo que todos os de casa “foram conhecendo pelo exterior a mudança que se havia produzido no seu ânimo interiormente”. (Ibid 10)
A releitura que a ferida inaugurou aponta, antes de tudo, para um Deus que aparece como uma espécie de música interior, uma ressonância que gera alegria. Uma musicalidade a que Inácio um dia viria a chamar de “loquela” (Diário Espiritual, 221). Esta descoberta de um Outro que vive e irradia desde dentro, de uma nova fonte de visão de todas as coisas, é o mistério que vai voltando Inácio constantemente para fora de si ao longo de toda a vida. A conversão de Inácio durou a vida toda e bebeu sempre desta experiência musical de encontrar uma ressonância divina no seu interior, voltando-o progressivamente para fora de si, fazendo da sua vida um Tomai Senhor místico e laborioso, contemplativo e ativo, fiel e criativo, para a maior glória de Deus e para o bem comum.
Creio que se Inácio se achasse entre nós, nos diria que o importante está em não deter-nos na ferida mas em aplicar-nos na “meditación del proceso” (Exercícios Espirituais, 19). Meditar que processo?
Creio que se Inácio se achasse entre nós, nos diria que o importante está em não deter-nos na ferida mas em aplicar-nos na “meditación del proceso” (Exercícios Espirituais, 19). Meditar que processo? O modo como Deus, lenta e suavemente, talhou o coração de um homem ferido e destroçado, fazendo-o reler a sua ferida, levando-o a acolhê-la como meio divino para encontrar a verdadeira alegria. Alegria que brota da escuta da voz de Deus no seu interior, nos livros da vida de Cristo e dos santos que lhe dera a sua cunhada e segunda mãe Madalena Araoz, na Virgem negra de Montserrat aos pés da qual depusera as suas armas, no mendigo a quem deixou os seus trajes finos e de quem recebeu as roupas da sua nova vida, nas lutas espirituais dentro das grutas côncavas de Manresa, na visão transbordante ao pé do rio Cardoner que corria fundo como a sua atenção…
A frase foi larga porque longo é o elenco dos bens recebidos que jorraram daquele início feliz. Da ferida brotou um processo. Para nos ajudar a meditar esse processo, ao longo dos próximos domingos do mês de Julho, mês de Santo Inácio, o P. Nuno Branco vai ajudar-nos a meditar nesse itinerário de Deus em Inácio. Será colocada diante de nós, e de modo criativo, a história de um ser ferido que se deixou alcançar por uma providência especial, chegando a encontrar a Deus em todas as coisas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.