Fomos criados para descansar. Descansar como Deus que descansa no sétimo dia de Criação. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e por isso convidados a descansar em Deus, no Seu descanso. Um descanso que é acerto, justiça, acerto de identidade e justiça de missão. O descanso como estado de verdade, como participação da Verdade. Somos criados para descansar e não somos, enquanto não descansamos. A nossa humanidade reside neste descanso. Fora dele ainda estamos a humanizarmo-nos, a deixar o vivente renascer para ser imagem e semelhança, a desabrochar para ser filho naquele que é Filho.
Por isso a grande pergunta que nos podemos fazer no final de cada dia e de cada ano é sobre o descanso. Estou cansado ou descansado? Progredi no descanso ou canso-me nas ombreiras da porta larga onde todos os convites em nome do descanso me desgarram e rompem em mil pedaços? Fomos criados para descansar e não somos enquanto não descansarmos.
À nossa volta a Criação empurra-nos para o descanso. Ela que descansa empurra-nos para o descanso. Somos abraçados pelo ar que descansa, pelo chão que descansa, pelo sol, pela lua, pela vegetação, pelos animais, pelos ventos, coisa animadas e inanimadas. Tudo descansa à minha volta e convida-me, em nome do Criador a descansar. “Homem sê homem! Ajusta-te à natureza mais profunda do que és: “imagem e Semelhança de Deus”. Não imagem e semelhança de outra criatura, da tua mãe ou do teu marido, do teu filho, do teu cão, das coisas que tens e das que desejas. Não és imagem e semelhança delas… apenas de Deus. E nessa experiência de ser imagem e semelhança Dele, descanso.
À nossa volta a Criação empurra-nos para o descanso. Ela que descansa empurra-nos para o descanso. Somos abraçados pelo ar que descansa, pelo chão que descansa, pelo sol, pela lua, pela vegetação, pelos animais, pelos ventos, coisa animadas e inanimadas. Tudo descansa à minha volta e convida-me, em nome do Criador a descansar.
A primeira fonte do meu cansaço está na busca de semelhança em algo que não me pode dar descanso, porque não tem como dar-me o que não tem. Não me pode dar o que somente Deus tem, a luz da minha identidade, o que sou como imagem e semelhança Dele. O homem foi criado para descansar. E descansa quando deixa que Aquele que É o informe, lhe dê identidade e missão. Um homem cansado fere a criação porque desajustado, fere o próximo porque exige o indevido, fere-se a si mesmo porque se aliena e dispersa em mercados de oferta de descanso. O primeiro Éden é o Éden onde o homem ao final da tarde passeia na companhia de Deus e se deleita nesse descanso de não ser confundido porque amado. Imagem e semelhança de Deus.
Como posso assim voltar a descansar…?
Partimos de uma evidência, de uma experiência comum, que nos irmana, que nos torna comunidade humana em caminhada, a experiência do cansaço. Vivemos e movem-nos numa biosfera de cansaço humano que nos alimenta e nutre até a exaustão. E esta experiência irmana-nos num radical comum, o da fragilidade e de uma nudez primordial – “quem te revelou que estavas nu?” (Gn 3, 11). Somos todos recém-nascidos. Somos expressão de um grito e de uma carência. O cansaço define-nos como criaturas, separa-nos da Natureza, torna-nos motivo de chacota, queixume, súplica de compaixão. Por isso, Aquele que habita o Descanso não descansa deveras. O jardim do Éden não é o mesmo sem o homem e a mulher, sem aqueles que sorriem a Imagem e Semelhança desse Deus Maior que nele passeia ao fim da tarde.
À nossa volta estamos submergidos numa cultura que vive do cansaço. O cansaço alimenta as nossas economias, a nossa ética, a nossa arte, a nossa espiritualidade … tudo gravita à volta desta realidade originária, incontornável. O homem vive cansado e aquele que tiver descanso para oferecer é rei e senhor. Por isso as ofertas de descanso multiplicam-se estiram-se no mercado das atenções. Tudo oferece o que não pode oferecer. Gurus, livros em milhões de tiragem, prateleiras de chocolates, montras de iPhones, páginas web de pornografia e de outras escritas… tudo anuncia o produto do ano: “descansarás se…”. E, no entanto, aqueles que visitam o silêncio que ainda existe, aqueles que se descalçam em dia de sábado, esses pressentem e vislumbram a mentira de tudo aquilo que é dito e anunciado… “não podes oferecer o que não tens…!”
Resta-nos erguer os braços. Esses braços erguidos de todos os bebés de colo deste mundo dirigidos ao seio maternal e virginal de uma promessa… “haverá descanso para nós? Haverá maneira de descansar para aquele que vive cansado?… “
Resta-nos erguer os braços. Esses braços erguidos de todos os bebés de colo deste mundo dirigidos ao seio maternal e virginal de uma promessa… “haverá descanso para nós? Haverá maneira de descansar para aquele que vive cansado?… “
No chão, onde os olhos pousam quando já não há céu para onde olhar, as raízes das árvores segredam suavemente ao nosso coração- “Sim, há descanso para ti, homem e mulher amados!”; – “Há modo de voltares a ser o que eras, neste jardim onde todos vos esperamos” – dizem as formigas, as teias de aranha, o tubo da máquina de lavar roupa, o copo de cristal guardado no armário da sala. – “Há descanso para vós, humanos amados”.
Neste sussurro e consolo da Natureza que nos rodeia fica a esperança da sua realização, ela abraça-nos nesta promessa, mesmo que a maltratemos, mesmo que a intoxiquemos com a nossa presença alienada. A Natureza concorre em tudo para o bem daqueles que o Divino Senhor ama. Por isso, com ela, o homem aprende a fazer a primeira pergunta, a mais fundamental, a que tem de responder durante a sua vida: “Quem nos pode dar descanso e ensinar a descansar como vós, criaturas do universo? Quem pode ser artífice de tão grande obra?”.
No céu, que é bem rente à terra que pisamos, Deus comove-se com o que vê e com o que ouve. Sente o peso do nosso jugo, a falta fundamental do nosso tropeço, e oferece-Se. Oferece-Se a Si mesmo: “Eu serei o vosso Mestre! Serei a ocasião do vosso regresso a casa. Por minha pura e livre iniciativa”, “Este Éden não é o mesmo sem ti, Homem e Mulher amados.”
Por isso, Aquele que é descanso e descansa, visita a nossa humanidade errante como sol nascente, em suave caricia no sussurro de um convite- “Serás o meu povo e eu serei teu Deus”.
Por isso, Aquele que é descanso e descansa, visita a nossa humanidade errante como sol nascente, em suave caricia no sussurro de um convite- “Serás o meu povo e eu serei teu Deus”.
Depois começa a terapia da história da salvação, uma coreografia de várias páginas e livros. O envio de pequenos aprendizes de dança, profetas, juízes e reis, tropegamente dançando para o povo, à frente da Arca da Aliança, a única melodia do descanso. Troços de beleza que comovem, mas não se impõem. Centenas de anos a fazer exercícios de alongamento, para melhor dançar. Preceitos, mandamentos, sacrifícios, oblações… e um dia dedicado à dança, o sábado. Um povo que dança, que dança com Deus e que aprende a dançar para todos. Finalmente, depois de tantos anos de ginásio, onde muitas outras danças e ruido quiseram prevalecer sobre a Dança do Descanso, é preciso que alguém dance a coreografia completa, sem erros, nem hesitações. É preciso que todos a vejam consomada, e que todos nelas se sintam convidados a dançar, em primeira mão, na vida de cada um.
*Esta reflexão do P. Paulo Teia, sj tem uma segunda parte que vai ser publicada no dia 10 de Fevereiro, Domingo.
** A fotografia que ilustra esta reflexão é da autoria de P. Paulo Teia, sj
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.