1. Como mel para a boca
Nina Simone canta Sinnerman. A história de um homem que pecou e não sabe para onde virar-se em busca de salvação. Esta música tornou-se o best of da banda sonora do filme Thomas Crown – A Arte do Crime, com Pierce Brosnan… ♪ ♫
2. Um texto bíblico
Terminada a purificação do santuário, da tenda da reunião e do altar, ele apresentará o bode vivo. Aarão imporá as duas mãos sobre a cabeça do bode vivo e declarará sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, todas as suas impiedades e todos os seus pecados, fazendo-os assim cair sobre a cabeça do bode; depois, o enviará para o deserto, mediante um homem designado para isso. O bode levará sobre si todas as iniquidades deles, para uma região solitária e será abandonado nesse deserto.
Aarão voltará a entrar na tenda da reunião, tirará as vestes de linho, de que se revestiu para entrar no santuário, e deixá-las-á ali. Banhará o corpo em água, num lugar santo, e tornará a revestir-se com as suas roupas; sairá, então, oferecerá o seu holocausto, o do povo, e fará o rito de purificação por si e pelo povo. E queimará sobre o altar a gordura das vítimas do sacrifício pelo pecado. (…)
Isto será para vós uma lei perpétua: no décimo dia do sétimo mês, jejuareis e não fareis trabalho algum, tanto os que são naturais da terra, como os estrangeiros que residirem no meio de vós. Porque, nesse dia, far-se-á por vós o rito da purificação, para serdes purificados; ficareis purificados de todos os vossos pecados diante do Senhor. Este será para vós um sábado, um sábado solene, durante o qual jejuareis: é uma lei perpétua.
Levítico 16,20-25.29-31
3. O esclarecimento
Yom Kippur é o “dia da Expiação” (ou do “Perdão”), que este ano se celebra entre a noite de terça-feira, dia 18 de Setembro, e a noite de quarta-feira, dia 19 de Setembro. O povo recorda todos os seus pecados e pede o perdão divino. É o dia mais solene e mais vivido do ano judaico, até mesmo pelos não-praticantes: em Jerusalém, o tráfego é reduzido a nada na área israelita. Para os cristãos é um dia com um profundo significado, já que o Novo Testamento entende a morte e a ressurreição de Jesus como o “Kippur definitivo” e o último “Sábado dos sábados”. Vamos à explicação.
Em que consiste a celebração desta festa?
- O Templo de Jerusalém existiu até ao século I depois de Cristo. Era aí que decorria a liturgia do Yom Kippur. Ela seguia as numerosas prescrições do capítulo 16 do Livro do Levítico (cortámos o texto por ser um bocadinho longo!). Era, em modo de caricatura, um talho gigante: aí se sacrificavam os touros e os bodes, aspergindo o altar e o recinto com o sangue dos animais. Como o Sumo-Sacerdote era o único autorizado a realizar todos os sacrifícios com os belos paramentos de linho, ele passava o dia a lavar-se e a mudar de paramentos, depois de cada ritual. A expressão “bode expiatório” vem precisamente dos sacrifícios do Yom Kippur. Tomava-se um bode e depositava-se sobre ele, simbolicamente, todos os pecados do povo. Era depois enviado para o deserto, a fim de o expulsar do espaço onde viviam os crentes.
- Atualmente, a antiga festa é ocasião para uma boa refeição, já que o Yom Kippur é um dia de jejum integral. Como o Templo já não existe, os judeus reúnem-se todo o dia na Sinagoga a fim de:
- Recordar todos os pecados do povo, nomeando-os um a um por ordem alfabética;
- Fazer o relato de todos os actos rituais outrora praticados no Templo. Gestos simbólicos acompanham este relato.
E o que é que isto tem que ver com os cristãos?
Graças ao Novo Testamento, percebemos que os primeiros cristãos, ou seja, os primeiros judeus que reconheceram Jesus como o Messias, utilizaram os rituais e a liturgia de Yom Kippur para compreender a morte de Jesus na cruz.
O texto com maior número de referências ao Yom Kippur é a Epístola aos Hebreus:
- a epístola insiste que o sacrifício de Jesus na cruz ocorreu apenas uma vez na História, tal como o Yom Kippur tinha lugar apenas uma vez por ano;
- afirma ainda que este sacrifício aconteceu fora da cidade (no Gólgota), o que permite o paralelo com a expulsão do bode expiatório;
- finalmente, o texto declara que, pela sua ressurreição, Jesus entrou no verdadeiro santuário (o Céu) para aí interceder por toda a humanidade, tal como o fazia o Sumo-Sacerdote no Yom Kippur no Templo histórico de Jerusalém.
A reter…
Esta festa judaica introduz a figura do bode expiatório que toma sobre si todos os pecados do mundo. Para os cristãos, está ali prefigurado o que se cumpre definitivamente na morte e ressurreição de Jesus: o perdão dos pecados para toda a humanidade.
4. E ainda uma palavra final…
O filósofo René Girard estudou em detalhe o chamado “mecanismo do bode expiatório”, presente, segundo ele, em todas as sociedades humanas. Lendo a morte e ressurreição de Cristo à luz da sua teoria, este autor manifestou a esperança de que este evento suprimisse o recurso impune a este violento mecanismo. Outros, pelo contrário, são menos otimistas:
Do que conheço da História, vejo que a humanidade não consegue dispensar os bodes expiatórios. Creio que sempre foram uma instituição indispensável.
Arthur Koestler (1905-1983), Le Zéro et l’Infini, 1940
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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