Como lemos a realidade?

Na semana do Dia Mundial dos Pobres, refletimos sobre a segunda preferência apostólica universal da Companhia: caminhar com os excluídos. Aqui o P. Domingos Monteiro da Costa testemunha a dimensão prática desta proximidade aos mais frágeis

Na semana do Dia Mundial dos Pobres, refletimos sobre a segunda preferência apostólica universal da Companhia: caminhar com os excluídos. Aqui o P. Domingos Monteiro da Costa testemunha a dimensão prática desta proximidade aos mais frágeis

Conta S. Lucas que um dia um doutor da lei perguntou a Jesus o que devia fazer para  ter a vida eterna. E Jesus respondeu-lhe com outra pergunta: «O que é que está escrito na lei? Como (a) lês

– «Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente; e ao próximo como a ti mesmo».

– «Respondeste bem! Faz assim e viverás!»

Mas o doutor da lei, querendo justificar-se, perguntou-lhe: – “E quem é o meu próximo

E Jesus contou a parábola do bom Samaritano que todos os leitores conhecem e, por isso, me dispenso de a transcrever (Lc. 10, 25-37).

São três as leituras feitas pelos três personagens da Parábola: duas coincidentes, as feitas pelos homens do templo – o sacerdote e o levita – para quem a ‘liturgia do templo’ era mais importante do que a ‘liturgia da caridade’, ignorando o homem caído à margem do caminho; e a leitura do Samaritano, um pagão para os Judeus, que cuidou do caído, possivelmente um judeu.

– «Qual dos três te parece ter sido o próximo daquele que caiu em poder dos salteadores?» – Perguntou Jesus.

– «O que usou de compaixão para com ele!» Respondeu o doutor da lei.

– «Então vai e faz o mesmo!»

Segundo a Parábola, não somos nós que escolhemos «quem é o nosso próximo». São as circunstâncias da vida que no-lo oferecem diariamente e no-lo põem diante dos olhos. Só temos que ‘discernir como lemos e olhamos para a realidade’. ‘O meu próximo’ é todo aquele que precisa da minha ajuda, hic et nunc (aqui e agora).

A vida das pessoas passa-se no mundo real, fora dos templos. Jesus não nasceu, não viveu, nem morreu no templo: nasceu num curral; viveu nos caminhos, cuidando dos que precisavam de ser cuidados e de quem ninguém cuidava; e morreu numa cruz! A Igreja existe no mundo! Foi ao mundo que Deus desceu, porque o «amou de tal modo que lhe deu o Seu Filho Único, para que todo o que n’Ele crê não pereça mas tenha a vida eterna» (Jo. 3,16). O que Deus fez com o Filho, fê-lo o Filho connosco, enviando-nos ao mundo, para que o amássemos, como Ele o amou. E é o que o Papa não se cansa de dizer.  Esse é o nosso primeiro lugar: mesmo para os cristãos, porque antes de encontrarmos um lugar na Igreja, pelo Baptismo, já o tínhamos encontrado no mundo, pelo nascimento. O nosso lugar natural é o mundo e não o templo!

Fizemos do Cristianismo uma religião como as outras, cujo centro é Deus, procurado nos templos, à margem da vida concreta e real das pessoas, quando Jesus Cristo pôs no centro da ‘sua’ religião o Homem, todos os homens, fazendo do amor ao próximo a verdadeira religião, como haveria de dizer o seu discípulo Tiago: «a religião pura e sem mácula diante de Deus é visitar os órfãos e as viúvas, nas suas tribulações  – os grandes pobres daquele tempo – e conservar-se isento da corrupção deste mundo»  (Ti. 1,27).

É pelo amor e/ou pela falta dele ao próximo que o mundo nos julga e não pela ‘confissão religiosa’ que praticamos. E é sobretudo da ‘liturgia da caridade’ que ele precisa! E será pela prática da ‘liturgia da caridade’ que seremos julgados: «Vinde benditos de meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado, desde a criação do mundo; porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recolhestes-me; estava nu  e vestistes-me; estava doente e visitastes-me; estive na prisão e fostes ver-me…» E aos outros dirá: «afastai-vos de mim…» por não terem feito o mesmo…

A vida das pessoas passa-se no mundo real, fora dos templos. Jesus não nasceu, não viveu, nem morreu no templo: nasceu num curral; viveu nos caminhos, cuidando dos que precisavam de ser cuidados e de quem ninguém cuidava; e morreu numa cruz! A Igreja existe no mundo!

Tanto uns como os outros se surpreendem e espantam do julgamento, perguntando: «quando é que te vimos nessas situações, para te socorrermos/não socorrermos?»

A resposta foi clara: – «O que fizestes/não fizestes aos mais pequeninos foi a mim que o fizestes/não fizestes!» (Mt. 25, 31-46). Por outras palavras: não é preciso saber se há ou não há Deus, para nos salvar e salvar o mundo; basta-nos saber que temos ‘irmãos’– o nosso próximo – a quem vemos e encontramos todos os dias, nos caminhos da vida.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) disse: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Podemos ignorar ou pôr de lado a liturgia do templo, mas não podemos – não devemos – pôr de lado a liturgia da prática da caridade: se não salvamos os outros, não nos salvamos a nós mesmos nem o mundo, como diz o Papa Francisco, pois ‘estamos todos no mesmo barco’. Isto nunca se tornou tão real e verdadeiro como hoje, como o mostra a degradação da nossa ‘Casa Comum’ – o planeta Terra.

«Como lês?» Como lemos a realidade? Depois de tomar posse da Paróquia da Mexilhoeira Grande, incomodavam-me os vários suicídios, praticados todos os anos por pessoas idosas, a quem a solidão metia medo, na sua velhice. E muito mais me incomodava a ‘leitura’ que faziam deles os familiares de quem se suicidava: ‘tinham nascido com esse destino’; ‘tinha sido a vontade de Deus!’ Uma triste imagem de Deus, que invocamos como Senhor da vida e que, nessas circunstâncias, as pessoas aceitavam como o instigador e ‘responsável pela morte de quem se suicidava!’

A minha resposta foi transformar em ‘Lar de Idosos’ um edifício, acabado de construir, destinado, em princípio, a residência de uma Comunidade de Jesuítas, que, na altura, não vieram. E, desde então, que eu saiba, nunca mais houve suicídios de pessoas idosas na freguesia, o que me levou a dizer, por brincadeira, que nós éramos mais importantes do que Deus, pois eu tinha-lhe cortado as voltas!…

«Como lês?» Como lemos a realidade?  Mais tarde, ao ouvir as lamentações de casais com filhos deficientes, perguntando-se o que seria deles – dos filhos deficientes – não sabendo a quem os deixar, pensei que a solução seria uma Aldeia para pessoas idosas, que pudessem levar com eles os filhos deficientes. Em vez de consultar o Bispo do Algarve e o meu Provincial – ‘a carne e o sangue’ (Gal. 1,16) – preferi consultar as autoridades civis, mais comprometidas com o mundo: o Presidente da Câmara de Portimão, arquiteto Martim Gracias, que se dispôs, de imediato, a oferecer o projeto e a apoiar a sua construção; e o Presidente da Junta de freguesia.

Essa intuição levou-me a pedir um sinal a Deus: a doação de um terreno, pois a Paróquia não tinha dinheiro para o comprar. Estávamos em 1987, ano em que o P. Américo, fundador da OBRA DA RUA (Aldeias do Gaiato) faria 100 anos de vida, no dia 23 de outubro desse ano, se fosse vivo. Alguém, a quem pedi o terreno, disse-me, depois de consultar o filho, que este não estava de acordo; mas aconselhou-me a escrever uma carta à população e que se fosse preciso pagar o terreno me ajudaria.

Escrevi a carta no dia 15 de outubro e entreguei o caso ao P. Américo, pondo como limite o dia 23 de outubro, 100.º aniversário do seu nascimento. E não foi que a doação apareceu exatamente, nesse dia – 23 de outubro?

Quando o Senhor Presidente da Câmara, que sabia que eu tinha estudado na Alemanha, me perguntou se tinha ido buscar a ideia da aldeia, à Alemanha, disse-lhe:

– “Na Alemanha não há aldeias para pessoas idosas! Fui buscá-la ao Evangelho!”

– “Ao Evangelho? Eu sou agnóstico, mas já li o Evangelho algumas vezes e não encontrei nele semelhante coisa!” – Respondeu.

– “Leia, por favor, nas entrelinhas, Sr. Presidente!”

E ele calou-se! E fez o projeto! E a tal Senhora a quem tinha pedido o terreno e me aconselhou a escrever a carta, deu-me dois mil contos!… E… E… E… desde então, «nunca mais a farinha se acabou na panela, nem minguou o azeite na almotolia, conforme dissera o Senhor pela boca de Elias» (1Re. 17, 16).

E a aldeia foi construída; e os pais com filhos deficientes, nesta freguesia, nunca mais tiveram razões para se afligirem quanto ao seu futuro… E tanta gente tem passado pela Aldeia de S. José de Alcalar, nestes mais de 30 anos, com a ideia de fazer coisa semelhante, nas suas terras, e, que eu saiba, nunca o conseguiram, ou nunca o quiseram! Bem dizia o P. Américo: “cada freguesia deve cuidar dos seus Pobres!”

Vem aí o DIA MUNDIAL DOS POBRES, que a Igreja, este ano, celebra no dia 14 de Novembro (penúltimo Domingo do ano litúrgico)! Aconselho os leitores a que leiam a Mensagem do Papa: «Pobres sempre os tereis convosco!»  (Jo. 11,7).

Não basta ler! Importante é o ‘como ler’, e muito mais importante, o que fazer: – «Então vai e faz o mesmo!»

 

Fotografia: João Ferrand

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.