CHOCANTE DESIGUALDADE
Nota da Comissão Nacional Justiça e Paz – 16 de outubro de 2016
Foi com indignação que muitos receberam recentemente a notícia de que a disparidade entre o nível dos salários dos dirigentes de topo das maiores empresas portuguesas, por um lado, e o nível dos salários médio e mínimo dos trabalhadores dessas empresas, por outro lado, já de si muito elevado (chega a atingir, nalguns casos, a proporção de um para cem), se acentuou no período de crise económica que atravessámos: entre 2010 e 2017, os salários desses dirigentes subiram cerca de 50%, quando o salário médio desses trabalhadores desceu cerca de 6% (ver Expresso de 29/10/2018).
A disparidade entre o nível dos salários dos dirigentes de topo das maiores empresas portuguesas, por um lado, e o nível dos salários médio e mínimo dos trabalhadores dessas empresas chega a atingir, nalguns casos, a proporção de um para cem.
Esta situação vem confirmar e agravar a mais geral desigualdade de rendimentos que caracteriza a sociedade portuguesa. Revela uma particular injustiça diante dos sacrifícios por que muitos passaram durante o período dessa crise e de que ainda hoje não recuperaram.
Esta temática da desigualdade de rendimentos em Portugal tem merecido a atenção da Comissão Nacional Justiça e Paz, que a ela dedicou a sua conferência anual de há dois anos, à qual deu o título: “Sociedade Desigual ou Sociedade Fraterna?”
Consideramos, na verdade, que uma sociedade com um tão acentuado grau de desigualdade de rendimentos se afasta de um modelo de sociedade justa, coesa e fraterna. E o mesmo se diga em relação a cada empresa onde se verifiquem tão grandes disparidades salariais, se encararmos a empresa como uma comunidade de pessoas, unidas em torno de propósitos que deveriam ser, em larga medida, comuns.
Consideramos, na verdade, que uma sociedade com um tão acentuado grau de desigualdade de rendimentos se afasta de um modelo de sociedade justa, coesa e fraterna
O sentimento de pertença a uma comunidade, a comunidade nacional ou a comunidade da empresa, muito se enfraquece em face dessas desigualdades.
Afirma, de forma clara e vigorosa, o Papa Francisco que enquanto não forem atacadas as causas estruturais da desigualdade social, que é a raiz dos males sociais, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum (Evangelii Gaudium, 202).
As desigualdades salariais a que assistimos nas maiores empresas portuguesas vão muito para além do que poderia justificar o incentivo ou a recompensa do mérito.
De um modo geral, os salários dos dirigentes do topo não dependem estritamente do sucesso da empresa e mantêm-se mesmo quando não se verifica esse sucesso. Não pode ignorar-se, por outro lado, que o sucesso de uma empresa nunca depende unicamente do trabalho dos seus dirigentes, mas de um trabalho de equipa onde todos desempenham o seu papel. Também a cada um dos trabalhadores são devidos o
incentivo e a recompensa.
São chocantes os muito elevados níveis salariais dos dirigentes de topo das maiores empresas portuguesas, que rivalizam com os de outros países europeus mais ricos, sobretudo porque contrastam com níveis salariais mínimos e médios muito inferiores aos desses países. O fosso deve, por isso, ser atenuado sobretudo através do aumento desses níveis salariais mínimos e médios.
Sem indicarmos medidas concretas para corrigir esta situação, por entendermos que não nos cabe fazê-lo, queremos manifestar a nossa indignação perante esta chocante desigualdade e apelar a que, de uma ou outra forma, ela seja corrigida.
Lisboa, 16 de outubro de 2018
A Comissão Nacional Justiça e Paz
Nota Editorial do Ponto SJ
1 – O Ponto SJ saúda esta nota da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) e entende-a como um alerta a que não podemos ficar indiferentes.
2 – Ainda que a CNJP considere não fazer parte da sua ação propor medidas concretas para contrariar esta profunda injustiça, entendemos que temos que ser capazes de, como Igreja, encontrar mecanismos que nos ajudem a definir critérios de discernimento que ajudem e orientem quem é responsável pelas decisões que conduzem a estas situações. É particularmente importante que os cristãos que possam ter influência nestas decisões se sintam interpelados pela Doutrina Social da Igreja a uma atitude de exigência e coerência. A denúncia destas situações é importante, mas, igualmente importante, para que se cumpra a dimensão profética da Igreja, é que se encontrem formas de oferecer critérios evangélicos de discernimento que se apliquem aos dramas concretos da nossa sociedade.
A desigualdade salarial é para muitas famílias obstáculo à possibilidade de acolher a vida e a cuidar dela do modo como a dignidade humana exige.
3 – Aproxima-se a Caminhada pela vida, que terá lugar a 27 de outubro, iniciativa que não queremos deixar de saudar. Essa caminhada lembra-nos que “Toda a vida humana, desde o momento da concepção até à morte, é sagrada” (nº 2319 do Catecismo da Igreja Católica). Ora, para além da defesa intransigente da dignidade da vida desde o momento da concepção e no momento da morte, estamos chamados a defender a dignidade da vida em todo o seu processo de desenvolvimento e em todas as suas fases. Apelamos por isso a que se aproveite a ocasião desta Caminhada pela Vida, para denunciar publicamente situações como aquela que justamente é denunciada pela CNJP e que atenta contra a dignidade da vida e contra o seu desenvolvimento. A desigualdade salarial é para muitas famílias obstáculo à possibilidade de acolher a vida e a cuidar dela do modo como a dignidade humana exige.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.