Cabo Delgado: desastre humanitário de proporções incalculáveis

Bispos africanos visitaram locais para onde fugiram os deslocados das zonas atacadas. A causa da guerra não é uma insurreição islâmica mas está relacionada com poderosos interesses económicos na região, diz quem está no terreno.

Bispos africanos visitaram locais para onde fugiram os deslocados das zonas atacadas. A causa da guerra não é uma insurreição islâmica mas está relacionada com poderosos interesses económicos na região, diz quem está no terreno.

O Instituto para a Paz Denis Hurley (DHPI) é um organismo da Conferência dos Bispos Católicos da África Austral (SACBC – África do Sul, Botswana e Suazilândia) que promove programas para a promoção da paz, da democracia e dos direitos humanos em diversos países africanos. Entre 2 a 4 de dezembro organizámos uma visita de solidariedade da SACBC à diocese de Pemba, em Cabo Delgado. Da delegação faziam parte D. Victor Phalana, Bispo de Klerksdorp e responsável pela Comissão Nacional Justiça e Paz, D. José Luís Ponce de León, Bispo de Manzini, a Ir. Tshifhiwa Munzhedzi, recém-nomeada Secretária Geral da SACBC, e Johan Viljoen, Diretor do DHPI.

Em Pemba, fomos recebidos pelo Bispo D. Luiz Fernando Lisboa e pelo Arcebispo de Nampula, D. Inácio Saure. O Sr. Manuel Nota, Diretor da Cáritas de Pemba, e a Sra. Betinha Ribeiro, gestora de projetos da Cáritas, também nos acompanharam nas diversas visitas.

A delegação da SACBC testemunhou um desastre humanitário de proporções incalculáveis. Há agora quase 500 mil pessoas deslocadas no sul da Província de Cabo Delgado, com cerca de 150 mil na área da própria cidade de Pemba, quase duplicando o número habitual de habitantes, que ronda os 200 mil. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) proporciona assistência humanitária (incluindo comida) a menos de 10% dos deslocados. Contudo, no final de novembro, anunciou que a ajuda iria cessar devido a falta de fundos.

O nosso grupo não encontrou quase ninguém que apoiasse a opinião de que a guerra em Cabo Delgado é uma insurreição islâmica com o objetivo de estabelecer um Estado islâmico. Quase todas as pessoas com quem falámos são de opinião de que esta guerra tem a ver com o facto de existirem empresas multinacionais que desejam controlar os recursos minerais e de gás da província, através da despovoação das zonas costeiras.

O nosso grupo não encontrou quase ninguém que apoiasse a opinião de que a guerra em Cabo Delgado é uma insurreição islâmica com o objetivo de estabelecer um Estado islâmico. Quase todas as pessoas com quem falámos são de opinião de que esta guerra tem a ver com o facto de existirem empresas multinacionais que desejam controlar os recursos minerais e de gás da província, através da despovoação das zonas costeiras.

Todas as terras em Moçambique são propriedade do Estado – a utilização da terra e a permissão de ocupação é conferida por um documento conhecido como “DUAT”. Foi-nos confirmado que os deslocados que chegam ao sul da Província têm os seus DUAT cancelados, tornando impossível que regressem assim que a violência cesse. Em Ancuabe, a nossa delegação foi informada de que os deslocados recebem um DUAT para aquela zona e é-lhes atribuída uma nova parcela de terra para cultivar, pois “provavelmente não regressariam ao local de onde vieram”. E, de acordo com informações recebidas, na cidade supostamente abandonada de Mocímboa da Praia assiste-se agora a um afluxo de construtores (muitos dos Emirados Árabes Unidos) que estão a inspecionar a cidade com o objetivo de a vir a reconstruir e a desenvolver o porto. Há também relatos de companhias petrolíferas e de exploração de gás natural a prospetar a costa da província da Zambézia, sem qualquer consulta às comunidades locais. Há já habitantes locais que afirmam que é apenas uma questão de tempo até que a guerra ali irrompa, como em Cabo Delgado, para os expulsar também das suas terras.

Entretanto, esta crise alastra a outras áreas. Há já mais de 40 mil deslocados na Província de Nampula, 20 mil dos quais na própria cidade de Nampula.

Na cidade de Pemba, encontrámo-nos com deslocados provenientes do distrito de Muidumbe que se reúnem para rezar no quintal da comunidade das Irmãs do Bom Pastor (Pastorelas). Antes dos ataques, Muidumbe tinha uma população de cerca de 79 mil habitantes espalhados por umas 26 aldeias. Todo o distrito está agora despovoado. Toda a gente que sobreviveu teve de fugir e muitas pessoas caminharam mais de 200 km para chegar a Pemba. A caminhada durou cerca de duas semanas, atravessando matas quase sem comida nem água. Muitos reúnem-se ali diariamente de 4ª feira até sábado para rezarem juntos e procurarem saber notícias dos seus entes queridos. Ao domingo, os deslocados de Muidumbe celebram a Eucaristia debaixo de um grande cajueiro. A maioria testemunhou ataques brutais.

Na sede da Missão, em Nangololo, tudo foi pasto de chamas: a Igreja e estruturas paroquiais, a casa dos Padres, a casa das Irmãs, a estação de rádio comunitária, etc. Com mais de 100 anos, era a segunda Missão mais antiga de Cabo Delgado.

Escutemos o P. Edegard da Silva Júnior, missionário saletino e superior da Missão: “No dia 30 de outubro, homens armados e violentos tomam conta por vinte dias de toda área da Missão… Toda a população foge para o mato. Nós nos refugiámos em Pemba, e não tínhamos notícias da real situação. O povo no mato passando por momentos delicados, situações desumanas. Nós tentando contacto com os animadores e favorecendo o envio de recursos para o transporte. Finalmente, no dia 19 de novembro, os terroristas abandonaram a Missão. Então algumas lideranças, mesmo correndo perigo, foram até a aldeia de Muambula e, com muita dificuldade, conseguem ligar para nós e comunicaram: ‘Está tudo destruído..’ Uma grande dor perpassa o nosso coração! As lideranças relatam que, pelos caminhos, estão encontrando muitos corpos já em decomposição e que aconteceram massacres. As ações dos terroristas são violentas, muitas pessoas foram decapitadas, casas queimadas e derrubadas. Esta dor não é apenas dos missionários. É a dor de um povo. Gente que continua sem localizar os seus familiares. Pessoas que tiveram as suas casas queimadas. Muitas pessoas assassinadas. Vidas e vilas destruídas”.

Em Pemba, visitámos também o bairro de Paquitequete, um dos mais pobres da cidade. À sua praia chegaram durante dias sucessivos os deslocados que fugiam de barco, dias a fio no mar sem água nem alimento… Muitos ficaram por ali mesmo, construindo casitas de caniço para se abrigarem.

Disseram-nos que são realizados diariamente até 9 funerais de pessoas que morreram de fome. Há também cólera.

Num dos dias, dirigimo-nos ao distrito de Ancuabe, a cerca de 100km a oeste de Pemba. Mais de 390 famílias (com 7 a 8 membros cada) de deslocados foram registadas na aldeia de Nangume, o local visitado pela nossa delegação. Disseram-nos que são realizados diariamente até 9 funerais de pessoas que morreram de fome. Há também cólera. Aos registados pela administração local é fornecido mensalmente pela Cáritas um pacote alimentar. No entanto, todos os dias chegam muitos novos deslocados, que não recebem nada pois os fornecimentos são insuficientes para todos.

Fomos também a Metuge, a quase 50 km da cidade de Pemba. Existem sete campos para deslocados neste distrito. Não lhes é fornecido qualquer alojamento. Os deslocados constroem abrigos de palha para si próprios. Alguns nem sequer isso têm, e dormem no chão debaixo de redes mosquiteiras. A nossa delegação falou com deslocados que vivem nestas condições há mais de sete meses.

Aqui fica este testemunho de uma visita que nos abalou muito. Cabo Delgado quer paz! Cabo Delgado precisa de paz!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.