Cada manhã, durante a minha infância e adolescência, a minha mãe ou o meu pai acordavam-me. Ser acordado por uma pessoa é diferente de ser acordado por um despertador. As pessoas não têm botões a dizer “buzz”, chegam quando chegam e anunciam-nos o momento.
O P. Rutílio Grande, jesuíta salvadorenho, pode comparar-se a um destes homens que nos acordam… Não apenas pelo facto de nos despertarem do sono, mas também por servirem de pontes ou charneiras entre o sonhado e o vivido. Eis a dupla missão dos benditos de Deus que nos acordam.
O despertar de São Óscar Romero (porque os santos acordam-se mutuamente)
No dia 12 de março de 1977, no caminho que liga os municípios de Aguilares e El Paisnal (El Salvador) alguns padres estavam perplexos numa estrada de terra batida. Ao pé deles, um jeep capotado com três pessoas abatidas: Rutílio Grande, padre de 49 anos; Manuel Solorzano, sacristão de 72 anos; Nelson Rutílio, de apenas 16 anos. De batina branca, um dos padres mais comovido com a cena dizem ter exclamado: “Pero padre Tílio, padre Tílio, qué le han hecho?” (Mas padre Tílio, padre Tílio, que lhe fizeram?) As dezassete balas, contadas na autópsia, tinham penetrado as costas do P. Rutílio Grande para a comoção do seu amigo, o bispo D. Óscar Romero.
Ambos tinham-se conhecido antes ainda da ordenação episcopal de Óscar Romero. Embora tivessem alguns desacordos sobre o tipo de pastoral que deveria ser realizado em El Salvador, D. Óscar encontrava no P. Tílio um confidente e um amigo. Pediu-lhe que fosse mestre de cerimónias da sua ordenação episcopal, que ajudasse a implementar na Igreja local a mensagem contida na tinta, ainda fresca, do Concílio Vaticano II.
Para o padre jesuíta, a intuição central do Concílio estava em recolocar o Evangelho próximo da vida quotidiana dos crentes, a fim de que a tradição eclesial não fosse um impedimento mas um canal para a ação de Deus na vida dos povos. Desta feita, o arcebispo Chavez y Gonzales enviou o P. Rutílio, juntamente com uma equipa de outros jesuítas, para a paróquia de Aguilares e El Paisnal. Depois de uma intensa preparação em equipa, os jesuítas chegaram à sua paróquia a 24 de setembro de 1972 a fim de iniciarem um novo tipo de ação pastoral, mais próximo da vida quotidiana dos mais pobres, que eram então a maioria. Cinco anos mais tarde, chegamos à estrada de terra batida com um jeep capotado. Na mochila do P. Rutílio, hoje exposta num museu da Universidade Centro Americana (UCA), podemos encontrar uma estola roxa, um livro com o Ritual do Baptismo, um livro de cânticos e os santos óleos. A partir deste momento começa a dar-se o despertar de D. Óscar Romero. Este é o seu testemunho:
Depois deste momento, Óscar Romero, então bispo de San Salvador, ordenou que no dia do funeral do P. Rutílio e dos seus dois companheiros de viagem, não haveria outra missa na diocese a não ser a que ele próprio celebraria pelo seu amigo defunto. De aí em diante, o compromisso do bispo salvadorenho sairía imensamente reforçado. Mas isso é já outra narrativa. Aquela que aqui nos detém é: quem era Rutílio Grande para despertar de tal forma a Igreja local?
Ser despertado para despertar
Rutílio era o mais novo de seis irmãos, filhos de Salvador Grande e Cristina García. A relação complicada entre os pais fez com que ele fosse educado pela avó. Essa dor afetou desde sempre o jovem Rutílio. Se a isso se junta uma saúde débil e uma tendência para se achar sempre aquém das exigências do Evangelho, temos o caldo para um perfil sensível, tímido e amável mas com tendência para a depressão. Desde a sua entrada no seminário até à sua admissão à Companhia e subsequente formação, o jovem Rutílio manifestou várias vezes períodos de depressão e fortes crises de fé. O seu companheiro Salvador Carranza, sj dizia que aquilo que o transformava eram as circunstâncias em que se entregava ao trabalho pastoral, em particular quando anunciava o Evangelho e fortalecia os outros em conversas pessoais.
Diziam-me as pessoas que o conheceram: “quando falava do Evangelho às pessoas, o P Rutílio transformava-se”. Esta transformação, dizem os seus companheiros jesuítas, foi-se tornando cada vez mais visível à medida que lhe eram confiadas missões de proximidade pastoral com as pessoas, em particular depois do seu tempo de estudos na Bélgica. Teria compreendido as palavras de Inácio de Loiola no Exame Geral daqueles que pediam admissão à Companhia de Jesus: “O fim da Companhia não é somente ocupar-se, com a graça divina, da salvação e perfeição das almas próprias, mas, com esta mesma graça, esforçar-se intensamente por ajudar a salvação e perfeição das do próximo”.
Porém, esta saída de si mesmo em direção ao próximo era apenas o primeiro sinal de tudo o que viria por diante. Rutílio iria participar num caminho orientado ao despertar da Igreja salvadorenha no sentido dado pelos textos do Vaticano II. Na sua primeira missão, o Seminário de S. José, Rutílio convidava os seminaristas a compaginar o estudo com momentos semanais de convivência pastoral com as comunidades locais. Esta nova metodologia, requeria uma diminuição da carga horária mas não do trabalho formativo, marcado pelo contacto com a realidade pastoral das periferias salvadorenhas.
Diziam-me as pessoas que o conheceram: “quando falava do Evangelho às pessoas, o P Rutílio transformava-se”.
Finalmente, enviado com um grupo de jesuítas para as paróquias de Aguilares e El Paisnal, Rutílio e outros dois companheiros jesuítas reuniram-se na Comunidade de Santa Tecla, no centro de San Salvador. Uma casa simples, de paredes finas, com uma espécie de claustro onde se perfilam os quartos dos vários jesuítas residentes e daqueles que ali vêm rezar ou descansar. Juntamente com os seus companheiros, fez Exercícios Espirituais de oito dias. De seguida, tomaram todo o material histórico e sociológico que encontraram sobre Aguilares e El Paisnal. Em grupo, tiveram momentos de estudo da situação social, económica e humana dos locais. Posteriormente, intercalando momentos de oração e reflexão pessoal, encontravam-se em grupo para pensar e discutir quais os melhores métodos pastorais para anunciar àquelas pessoas a frescura do Evangelho. Chamamos hoje a isto um exercício de sinodalidade ou de discernimento comunitário. Não estamos errados ao fazê-lo, mas o que eles tinham em mente era o convite do Papa João XXIII a uma pastoral que procurasse ver, julgar e agir (Cf. Mater et Magistra, 236).
Podemos encontrar, neste elenco de factos, o caminho de uma pessoa tímida e delicada que encontrou no seu caminho meios para não se entrincheirar na sua personalidade mas para sair de si. Desta saída de si, revelou-se um impulso, no seu modo de ser, um elán quase natural para anunciar o Evangelho com entusiasmo, criatividade e conhecimento interno de Cristo e da vida das pessoas a quem se dirigia. Prefigurando tantas intuições hoje vistas como inovadoras na boca do Papa Francisco — Igreja em saída, teologia do encontro, sinodalidade — Rutílio emerge como uma pessoa de imensa qualidade profética.
Recuerdos de Aguilares
Quando visitei a aldeia de Aguilares, no ano de 2017, ainda lá vivia o P. Rutílio. Sim, já tinha sido assassinado, aliás, martirizado, muitos anos antes. Mas a sua presença, as memórias da sua bondade e proximidade eram ainda muito visíveis. Nas pobres aldeias de El Salvador, o jovem padre era recordado pelo bem que jogava futebol com os miúdos. Imagino que o pó se lhe entranhasse nos sapatos negros de padre, naquelas aldeias pobres do pequeno país salvadorenho.
A paróquia tinha aproximadamente 30 mil habitantes, numa zona de produção de cana de açúcar em grandes latifúndios. “Uma das causas do alto nível de conflito — escreve o P. German Rosa, sj — era produto da alta concentração de riqueza e da incipiente crise do poder político que não correspondia às necessidades dos setores públicos e dos mais vulneráveis. Essa situação acabou por desencadear uma guerra civil prolongada desde os finais dos anos 70”.
Somos simplesmente anunciadores do Evangelho do Reino que tem a ver com a totalidade da nossa vida e com toda a criação.
Diante desta situação de miséria e exploração, o P. Rutílio Grande e os seus companheiros começaram por criar grupos de “delegados da Palavra” — que ainda hoje existem. Líderes apostólicos que recebiam formação bíblica e orientavam grupos de reflexão bíblica. Dizia-me o Lolo, uma das crianças que eram convidadas pelo sacerdote para jogar futebol: “o padre Tílio nunca nos disse que nos tínhamos de revoltar contra os patrões. O meu pai era um dos delegados da Palavra. Uma vez, chegado a casa, disse-nos que o padre Tílio lhe dissera para ler com os camponeses do seu grupo o terceiro capítulo do Êxodo. Lá, Deus chama a Moisés para mostrar ao povo que Deus não o abandonou no seu sofrimento mas que caminha com eles. O meu pai olhava para nós, os filhos, enquanto lia e chorava. Quando lhe perguntamos porque o fazia, apenas nos dizia que sempre soubera que os oprimidos éramos nós e que precisávamos de fazer alguma coisa. A única coisa que não sabia era que Deus era o Pai de Jesus que caminha connosco enquanto queremos mudar as coisas”.
Efetivamente, diante de um povo maltratado por uma ditadura militar, o P. Rutílio Grande animou os seus paroquianos dando-lhes a Escritura para os ajudar a ler a sua situação vital. Não era de grandes discursos naqueles momentos. As mamacitas, como chamavam às matriarcas da aldeia, diziam que o seu hábito era o de ler uma passagem bíblica com os delegados da Palavra e perguntar-lhes: “E vocês, o que pensam sobre isto?” Apenas se necessário, comentava alguma coisa da conversa no final, mas nem sempre. Aquilo que fazia regularmente era dar algumas dicas para imaginar as passagens do Evangelho como se achassem presentes dentro da cena, popularizando assim algumas práticas dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.
Diante dos que o acusavam de ser comunista ou de estar a protestantizar as comunidades, respondeu uma vez: “não somos políticos, nem experimentalistas; somos missionários, ou seja, enviados do Senhor. Somos simplesmente anunciadores do Evangelho do Reino que tem a ver com a totalidade da nossa vida e com toda a criação. E havemos de o fazer sem dissimulação ou interesses pessoais. Para uns isto será uma boa notícia, para outros será um punhado de sal que arde muito nas feridas, mas que também os poderá curar”. Até à data da sua morte, a equipa missionária organizou 10 comunidades urbanas e 26 rurais com um grupo de aproximadamente 300 delegados da Palavra.
Na verdade, diante de toda a tentação eclesial de olhar a fé pensada como algo mais sedutor do que a fé vivida, talvez ainda precisemos de um Rutílio que nos acorde para a fé que recebemos em Cristo Jesus.
Recolocar a Palavra e a realidade no centro da comunidade
Há um provérbio chinês que diz: “Não há nada mais extenuante que viver em tempos interessantes”. Queiramos ou não, vivemos tempos interessantes e o desafio de manter viva a chama do Evangelho com fidelidade criativa nem sempre é uma tarefa óbvia nesta mudança de tempo que vivemos. Pode ser que nos pareça demasiado simplista apontar para um homem que punha as pessoas a ler a Bíblia para entenderem e conversarem sobre a sua vida e as decisões comunitárias e sociais que, à luz da Palavra de Deus, deviam assumir. Mas não será esse um desafio contíguo ao de Cristo que “não tinha biblioteca” — como dizia o Pessoa — nem qualquer ostentação ou poder, e ainda assim foi capaz de desequilibrar o nosso imaginário pagão inato colocando a Palavra de Deus e a realidade dos seus contemporâneos no centro do Seu coração? Na verdade, diante de toda a tentação eclesial de olhar a fé pensada como algo mais sedutor do que a fé vivida, talvez ainda precisemos de um Rutílio que nos acorde para a fé que recebemos em Cristo Jesus.
O P. Rutilio Grande será beatificado a 22 de janeiro.
Foto em destaque: P. Rutílio nos seus tempos como estudante jesuíta.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.