Bendito Jordão!

Le Pérugin, Molière, Romain Duris, Fabrice Luchini e Aristóteles. Tudo polvilhado com um pouco de geografia e de história, para compreender melhor o que se esconde nas águas do Jordão...

Le Pérugin, Molière, Romain Duris, Fabrice Luchini e Aristóteles. Tudo polvilhado com um pouco de geografia e de história, para compreender melhor o que se esconde nas águas do Jordão...

1. Como mel para a boca

A palavra “Jordão” vem do hebraico e designa o rio onde Jesus foi batizado (a Bíblia tem outros episódios igualmente interessantes com esta fronteira natural como cenário!). E vá-se lá saber porque é que Molière deu semelhante nome a uma das mais caricatas personagens do teatro francês!

De qualquer forma, seria um pecado não vos mostrar aquela famosa cena do filme Molière de Laurent Tirard (2007), onde Fabrice Luchini faz precisamente de Monsieur Jourdain (“Senhor Jordão”)…

https://youtu.be/kkSiEgcWZLg


2. Um texto bíblico

Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi baptizado por João no Jordão.

Quando saía da água, viu serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre Ele como uma pomba.

E do céu veio uma voz:

– Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado.

Evangelho segundo São Marcos 1,9-11


3. O esclarecimento

Frequentemente imaginamos que o Jordão é um rio imponente. Veja-se, por exemplo, a ilustração abaixo, do século XI…

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Iluminura do scriptorium de Colónia, Batismo de Cristo (c. 1020), Codex Hitda (evangeliário), Hessische Landesbibliotek, Darmstadt, Alemanha.

(Repare na representação do “deus-rio” Jordão – a figura deitada no canto direito da imagem – à imitação das alegorias mitológicas). 

Na verdade, o Jordão é uma ribeira bem modesta, que se pode atravessar facilmente, como o sugere a representação de Le Pérugin (ver abaixo). Contudo, este pequeno curso de água é simbolicamente muito importante, a pelo menos três níveis:

  • Geograficamente, o Jordão situa-se numa falha natural que parte da zona dos Grandes Lagos em África e passa pela Terra Santa. Esta falha faz com que o Jordão corra a cerca de 400 metros abaixo do nível do mar. É o lugar mais baixo da terra! Quando Jesus vem receber o batismo ao Jordão, ele está literalmente a vir às entranhas da Terra, ao seu lugar mais baixo. Como se o seu batismo representasse topograficamente o seu abaixamento ao tornar-se homem. De facto, em hebraico, o termo “JaRDeN”, que traduzimos por “Jordão” em português, significa precisamente “descida”.

 

  • Historicamente, o Jordão é uma fronteira natural que separa a Terra Prometida do deserto, onde, de acordo com o Pentateuco, o povo eleito caminhou durante 40 anos, sob a guia de Moisés. É o rio ou ribeira que o povo atravessou para entrar na Terra Prometida. Ao aceitar ser batizado no Jordão, Jesus está, por isso, a recapitular toda a história do seu povo e, simbolicamente, a reentrar com ele na Terra Prometida.
  • Teologicamente, a fronteira entre o deserto e a Terra Prometida simboliza a separação entre a morte e a vida. Ao ser batizado no Jordão, Jesus está literalmente a escapar a uma terra de morte e a abrir e tornar acessível o caminho até ao Reino, que é a plenitude da vida! O batismo torna-se assim a entrada numa vida nova, na qual a morte deixa de ser aquele temível aguilhão, de que fala São Paulo.
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Le Pérugin (1448-1523), O batismo de Cristo (1481), Capela Sistina, Vaticano, Roma.

Este triplo simbolismo confere ao lugar do batismo uma enorme profundidade de sentido. Como acontece frequentemente na Bíblia, “um sentido pode esconder outros sentidos”: neste caso, a geografia oferece uma autêntica lição de teologia! Para o descobrir, é preciso aceitar mergulhar nas Escrituras, como quem mergulha nas águas do Jordão: quanto mais se mergulha nas Escrituras, melhor se compreende as suas inesgotáveis riquezas!


4. E ainda uma palavra final…

Prefigurando a ressurreição, o batismo de Jesus anuncia já a passagem da morte à vida. E para os crentes, esta esperança é um dom enorme, porque como reconhecia Aristóteles:

“O mais temível de tudo é a morte, que é o termo de tudo, além do qual não há mais nem bem, nem mal, segundo parece.”

(Aristóteles, Ética a Nicómaco)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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