As mulheres e o ministério ordenado: argumentos teológicos e táticas magisteriais*

Quando a Igreja tiver amadurecido transição da “sociedade da honra” para a “da dignidade”, poderá assumir esta transição, não como uma infidelidade à tradição, mas como crescimento na consciência comum do exercício do ministério de anúncio.

Quando a Igreja tiver amadurecido transição da “sociedade da honra” para a “da dignidade”, poderá assumir esta transição, não como uma infidelidade à tradição, mas como crescimento na consciência comum do exercício do ministério de anúncio.

Este texto foi publicado originalmente na edição 199-4 da revista Brotéria, de outubro 2024

Têm alguma noção de quantos livros se escrevem num só ano sobre as mulheres?
Têm alguma noção de quantos são escritos por homens?
Estão cientes de serem, talvez, o animal mais discutido do universo?

V. Woolf, A room of one’s own, 1929    

A história dos argumentos cristãos e católicos que consideram o sexo feminino um impedimento para a ordenação conheceu uma mudança brusca com o advento da modernidade tardia (nota2). Este mundo que começa na Europa no século XIX introduz uma mudança de paradigma cultural e social que consiste na transição da “sociedade da honra” para a “sociedade da dignidade” (nota3). A lógica da diferença e da preferência que marcara a primeira é substituída pela lógica da igualdade e da paridade de oportunidades da segunda. Do mesmo modo, a lógica da autoridade é substituída pela lógica da liberdade. Com esta passagem, mudam também os argumentos teológicos que são, agora, forçados a considerar um novo perfil público da identidade feminina. Introduz-se, por isso, uma outra variável no juízo eclesial que irá marcar profundamente os desenvolvimentos da teologia e do magistério entre os séculos XIX e XX. Para compreender bem este fenómeno, é necessário considerar o facto de que a mudança de época transformou não tanto as convicções e as crenças da fé mas, sobretudo, a cultura comum que entra em crise. Neste processo de transformação cultural que acontece como passagem da sociedade da honra para a sociedade da dignidade, o risco para a Igreja Católica está em identificar a tradição, não com base em autoridades especificamente eclesiais, mas apoiando-se sobre evidências do “Antigo Regime”. Confundir o Evangelho com o “Antigo Regime” torna-se um risco muito elevado, sobretudo quando se situa na zona sempre particularmente delicada que é fronteira entre fé e costumes. Entre os pontos mais afetados por esta mudança cultural está a conceção da identidade, da natureza e da função das mulheres na sociedade e na Igreja. A tendência para identificar “verdades de fé” com hábitos do “pequeno mundo antigo” manifestou-se de forma solene, precisamente, na compreensão da mulher.

No contexto desta transição problemática, um facto emblemático e simbolicamente decisivo, sofrido, em grande parte, pela cultura eclesial oficial, foi a aquisição de uma nova dignidade por parte da mulher que passa a ter lugar no espaço público: “mulier in re publica interest” (“o ingresso da mulher na vida pública”), assim como ficou registada e sancionada de forma explícita por João XXIII na sua encíclica Pacem in terris (1963). Este mesmo ingresso da mulher na vida pública é reconhecido e assumido como “sinal dos tempos”. À luz deste texto profético, o magistério católico viu-se obrigado a modificar radicalmente os argumentos desenvolvidos pela cultura canónica e teológica ao longo de cerca de 800 anos, mas sem conseguir superar o impedimento enquanto tal. Sob este ponto de vista, será interessante examinar o caminho que a tradição fez até hoje, de modo a evidenciar até que ponto o novo paradigma cultural influenciou o modo como a teologia fala da relação entre a autoridade eclesial e o sexo feminino.

Para oferecer um esclarecimento sistemático da questão, gostaria de apresentar, numa primeira parte, os argumentos elaborados pela “sociedade da honra” e, numa segunda parte, pela “sociedade da dignidade”, para deduzir, num terceiro momento, uma série de perspetivas cujo trabalho de reelaboração teológica é, hoje, não só possível como necessário.

 

ARGUMENTOS QUE NASCEM DA “SOCIEDADE DA HONRA”

Na “sociedade da honra”, que vive de diferenças e de preferências, não é difícil sequenciar três grandes distinções que qualificam estruturalmente o saber teológico:

– a diferença entre Deus e o ser humano;
– a diferença entre homem e mulher;
– a diferença entre clérigos e leigos.

Num certo sentido, não será excessiva a afirmação de que estas três diferenças se implicam mutuamente. É típico desta sociedade considerar que, para defender a diferença hierárquica de Deus em relação ao ser humano, isto é, a omnipotência divina face à impotência humana, se considera “natural” e “necessário” afirmar, por um lado, a superioridade hierárquica do masculino sobre o feminino, e, por outro, a superioridade do estado clerical sobre o estado laical. Neste quadro cultural e eclesial, que não pode, de forma alguma, ser separado das explicações teológicas, os argumentos fundamentais em torno da “hierarquia dos sexos” são essencialmente três: teorizam-se um “impedimento”, uma “exigência” e uma “substância” para a ordenação.

O SEXO FEMININO COMO IMPEDIMENTO

Numa leitura “universalista” das ordens sacras, na medida em que diz respeito de forma abstrata e potencial a cada batizado, quando feita a partir de uma abordagem dogmática e jurídica, identificam-se causas específicas que constituem “impedimento”. Na lista proposta por São Tomás de Aquino, no Scriptum super Sententias (IV, d.25, q.2,aa.1-2), os impedimentos são os seguintes:

– ser do sexo feminino;
– ser menor ou incapaz no uso da razão;
– estar em condição de escravidão;
– ter sido condenado por homicídio;
– ser filho natural (“ilegítimo”);
– ser incapacitado fisicamente.

Fica claro que a lógica desta lista põe em evidência uma “falta de autoridade” por parte dos sujeitos em causa que lhes impede, de forma mais ou menos grave, a acessibilidade à ordenação. Há, no entanto, uma particularidade relevante a sublinhar. Alguns impedimentos respondem a uma “necessitas praecepti” (“exigência por força do requisito”) e derivam de “convenção ou prudência”. Podem, por isso, ser superados: por exemplo, com o tempo, os menores tornar-se-ão adultos; o escravo pode ser emancipado; os chamados “filhos naturais” podem deixar de o ser pelo reconhecimento dos progenitores ou por meio de dispensa… O único impedimento que responde a uma “necessitas sacramenti” (“exigência intrínseca do sacraento”) é ser do sexo feminino. A mulher é considerada um caso “natural” de falta de autoridade que não prevê nem dispensa nem emancipação. Esta conceção pré-moderna do feminino, ligada a noções biológicas e fisiológicas, condiciona antropológica e sociologicamente o julgamento teológico. Confundir um “preconceito cultural e social” com uma “necessidade sacramental incontornável” é o grave limite desta abordagem.  Mas as grandes objeções que suscita não estão tanto nessa leitura, considerada em si mesma, mas no facto de que se continue a adotá-la hoje, sem prestar suficiente atenção às condições culturais e aos aspetos sociais do discurso teológico.

O SEXO MASCULINO COMO REQUISITO

Um outro filão da tradição medieval raciocina de modo diferente. Aquele que se refaz a São Boaventura coloca a reflexão, não de forma negativa, mas positiva. O desenvolvimento da reflexão no contexto da teologia escolástica pode ser concebido como a elaboração de uma “dica” que, no texto matricial de grande parte da reflexão teológica da Idade Média que são as Sentenças de Pedro Lombardo, contém apenas uma referência à “simonia” e outra à “idade/incapacidade”. A reflexão dos teólogos, influenciada certamente pela consideração jurídica paralela à questão, dividiu-se em duas vertentes: de um lado, aquela que reflete sobre os “impedimentos”, que antes expus, e, do outro, aquela que reflete sobre os “requisitos”. De uma parte, está a exclusão do “sexo feminino” considerado como impedimento; da outra, está a indicação do “sexo masculino” como requisito. Neste sentido, lemos em Boaventura, no seu Comentário às Sentenças (IV, Dist. 25, a 2, q. 1-4), a apresentação de quatro requisitos:

– o sexo masculino;
– o uso da razão;
– a indivisibilidade da carne;
– a condição de liberdade.

Não entro aqui no exame detalhado dos argumentos, mas observo que, na conclusão, ao afirmar que “as mulheres nem por direito nem de facto podem receber a ordenação”, Boaventura aborda uma diferença entre “não ter que” e “não poder”. De facto, os textos históricos que falam de “diaconisa” e de “presbítero” são reais, mesmo que sejam interpretados de forma redutora. Neste sentido, permanece em aberto uma diferença entre “dever” e “poder”, mesmo que seja resolvida de maneira uniforme. No final da sua argumentação, Boaventura sente que deve explicar a ratio huius, ou seja, a razão da solução que apresenta. A resposta soa assim: «hoc non venit tam ex Institutione ecclesiae, quam ex hoc, quod eis non competit ordinis Sacramentum», ou seja, «isto não deriva tanto da instituição da Igreja quanto do facto de a elas [as mulheres] não competir o Sacramento da ordem». A explicação desta “incompetência” pode ser rastreada diretamente até ao nível simbólico:

De facto, neste Sacramento, a pessoa que é ordenada significa Cristo mediador; e porque o Mediador somente existiu no sexo masculino e pode, pelo sexo masculino, ser significado, então a possibilidade de receber ordens só compete aos varões, os únicos que naturalmente podem representar e, de harmonia com a receção do carácter, dele efetivamente apresentar o sinal (nota4).

Deve-se considerar, porém, que esta tese é definida por Boaventura como a positio probabilior (posição mais provável), apoiada por muitas testemunhas. Notamos, portanto, que a discussão, apesar de encontrar uma solução explícita ao nível de uma “correlação simbólica entre sexo, autoridade e representação”, apenas é proposta como a “posição mais provável”.

A DETERMINAÇÃO DA “SUBSTÂNCIA” DA ORDEM SACRA

A elaboração que aconteceu em campo jurídico, que marcou profundamente a tradição, reelabora de maneira particular (e, em certo sentido, inicia) as posições da teologia sistemática. O argumento mais original e juridicamente mais antigo consiste em atribuir o “sexo masculino” à “substância do sacramento”. Esta é uma posição mais próxima de Boaventura do que de Tomás de Aquino, já que assenta mais sobre o registo positivo do que sobre o negativo. E, no entanto, ao contrário da abordagem de São Tomás, introduz mais explicitamente o “pressuposto da reserva masculina”, que vai assumir cada vez mais a forma de um “pressuposto” e de um “preconceito” que, por sua vez, a teologia pode dar por garantido sem ter de questionar. Se a “substância do sacramento” implica a reserva masculina, as questões relativas aos impedimentos são imediatamente colocadas a jusante desta evidência a priori, incontestada e igualmente não comprovada. Mas o que é óbvio não é necessariamente compreendido (E. Juengel). Ao longo dos séculos, o conhecimento canónico contribuiu significativamente para validar este pressuposto – supostamente – óbvio, que o mundo tardo-moderno vem pôr radicalmente em discussão como não passando de um preconceito.

O HORIZONTE DA “DIFERENÇA” COMO “HIERARQUIA” ENTRE O MASCULINO E O FEMININO

Concluindo esta primeira parte, podemos perguntar-nos: o que têm em comum todos estes argumentos e estas soluções relativamente à “exclusão das mulheres” do ministério ordenado? A chave de leitura da “sociedade da honra” é de grande ajuda porque permite não culpabilizar o “quadro teórico” dentro do qual o pensamento da “diferença de Deus” a identifica imediatamente em duas grandes diferenças: entre o homem e a mulher, entre o clérigo e o leigo. Durante séculos, sem nunca ter perdido a qualidade profética que é própria do serviço ao Evangelho, a Igreja não deixou de experimentar o condicionamento de uma cultura que só conseguia pensar a fé através da “diferença” e da “preferência”. A identificação da Igreja com a forma da “societas inaequalis” (“sociedade de desiguais”), da qual absorveu formas culturais e institucionais, conduziu a uma grande rigidez diante da nascente “societas aequalis” (“sociedade de iguais”) moderna. Com a ascensão do homo aequalis (ser humano igual entre si), decorrente das grandes revoluções políticas e industriais entre os séculos XVIII e XX, ainda que se tenha procurado refúgio no homo hierarchicus (ser humano hierarquizado), reconhece-se progressivamente que os argumentos clássicos tinham entrado incontornavelmente em crise. Tanto a hierarquia entre os sexos como a hierarquia entre os batizados deviam ser submetidas a profunda revisão. Com a preparação dos “movimentos” que o precederam, com o Concílio Vaticano II, identificamos o surgimento da dupla contestação a este “primado da diferença”. A ascensão do conceito de “sacerdócio comum” e a observação da “entrada das mulheres no espaço público” constituem os dois “sinais dos tempos” que implicam o início formal de uma grande “tradução da tradição”. A partir daí, a questão passa a ser esta: como dizer e como viver a diferença de Deus, através de Cristo, com o dom do Espírito Santo, no contexto da sociedade da dignidade, que já não procede da diferença e da autoridade, mas da igualdade e liberdade? Por volta dos anos 1962–65, começa, de facto, uma outra história para a “reserva masculina”.

 

OS ARGUMENTOS QUE NASCEM DA “SOCIEDADE DA DIGNIDADE”

A “sociedade da dignidade” é um desafio exigente que traz consigo grandes e novas oportunidades juntamente com grandes e novos riscos. Ao partir do sujeito (ou do indivíduo) e da sua liberdade (imediata), torna-se claro que a “alteridade” e a “autoridade” passam a correr o risco de serem postas de lado.

No horizonte da igualdade e da paridade, a salvaguarda da diferença pode ser procurada “por princípio”, “de facto” ou “ex auctoritate” (nota5). Os argumentos clássicos já não podem ser utilizados por si só, sob o risco de desacreditar completamente a posição expressa pelo magistério. Se observarmos a tendência dos pronunciamentos oficiais a partir da década de 70 do século XX, notamos que desaparece completamente a referência à “falta de autoridade” das mulheres, que é só ao argumento simbólico que se recorre amplamente, que se dá crédito a uma “lógica dos princípios” mariano e petrino (nota6). De uma forma completamente nova e quase inédita, passa também a trabalhar-se numa “demonstração histórica” ​​que pretendia suplantar completamente os argumentos teológicos sistemáticos. Examinemos de forma seletiva os textos mais decisivos desta fase recente (nota7):

INTER INSIGNORES (1976)

O texto da Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa Paulo VI, destaca-se pelo desejo de oferecer “razões teológicas de conveniência”. É surpreendente, contudo, que o uso de fontes pareça bastante descontraído. Concentro-me apenas na forma como é usado o pensamento de Tomás de Aquino (e, surpreendentemente, não o de Boaventura) para justificar “sacramentalmente” a exclusão das mulheres do ministério sacerdotal. A grave lacuna consiste no facto de citar um texto de São Tomás como se falasse das diferenças corporal e sexual da mulher em relação ao homem, enquanto no texto citado se fala da diferença de autoridade do escravo em relação ao homem livre. A tentativa de demonstrar que só o homem/varão pode garantir a “semelhança natural” com Cristo impõe um sentido completamente forçado ao texto de São Tomás. Este exige que a autoridade de Cristo seja confiada à representação de um sujeito que, como Cristo, é livre e não escravo. A passagem da lógica da autoridade para a lógica da anatomia apresenta-se como indício de uma grave incompreensão do “sinal dos tempos”: a partir do momento em que a mulher “entrou com autoridade no espaço público”, deixa de poder ser equiparada a um “servo por natureza” e passa, por isso, a ser capaz de representar a autoridade de Cristo. É paradoxal que o texto da Declaração, que traz no título a novidade do “sinal dos tempos” da entrada das mulheres no espaço público com uma das “notas inter insigniores” (“uma das notas mais importantes”) do mundo contemporâneo, defenda a lógica da exclusão das mulheres com argumentos que negam radicalmente esse sinal. A contradição não poderia ser mais clara nem mais embaraçosa.

MULIERIS DIGNITATEM (1988)

Também este documento se insere no quadro de uma tentativa mais geral de entrar em diálogo com a “dignidade das mulheres” (também aqui, como em Inter Insigniores, o renascimento da Pacem in terris está incluído no título). Contudo, a leitura essencialista do feminino, mesmo que se despoje da linguagem da subordinação explícita, típica da tradição que já examinámos, utiliza argumentos novos, mas de modo tão artificial que são confusos. Como exemplo manifesto desta falta de clareza, veja-se a correlação que é estabelecida entre a instituição da Eucaristia, a dinâmica esponsal e a afirmação da reserva masculina, na única passagem em que o texto aborda diretamente a questão da ordenação feminina:

Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é “feminino” e o que é “masculino”, querida por Deus, tanto no mistério da criação como no da redenção. É na Eucaristia que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja Esposa. Isto torna-se transparente e unívoco quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age “in persona Christi”, é realizado pelo homem. É uma explicação que confirma o ensinamento da Declaração Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial. (MD 26)

Os pressupostos da tradição e as perspetivas novas misturam-se de modo a apoiar velhos preconceitos com argumentos novos, nunca utilizados: não são apenas pouco convincentes, são também decididamente arbitrários. Em que medida, por exemplo, a “reserva masculina”, deduzida do chamamento de apenas doze homens por parte de Jesus, diz respeito também à instituição da Eucaristia? Será que a Eucaristia está ligada a alguma reserva? O facto de que na instituição da Eucaristia seja «lícito pensar que dessa maneira ele [Jesus] queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é “feminino” e o que é “masculino”», parece bastante difícil de demonstrar, seja em relação aos textos, seja em relação aos significados. O facto de que a redenção de Cristo Esposo ocorra em relação à Igreja Esposa – e não há razão para duvidar disso –, de que modo pode ser considerado como base factual para vir a deduzir, de forma completamente arbitrária, que Cristo Esposo esteja para o “masculino” como a Igreja Esposa está para “feminino”? De onde decorre tal passagem da analogia para a anatomia? Será que o “género gramatical” das palavras pode impor soluções evidentes ou, mesmo, indiscutíveis aos níveis teológico, sacramental, jurídico e sexual? Na realidade, é a própria aproximação à argumentação, com toda a sua evidente fragilidade, que leva a considerar de uma forma diferente a conclusão afirmada no final daquele número. A pretensão de que esta “explicação” (que, de facto, não explica o texto) pode confirmar o ensino proposto pelo Inter Insigniores revela-se muitíssimo frágil. A vaga inconclusividade deste suposto esclarecimento, gerada pela sobreposição de argumentos diferentes e heterogéneos, mostra antes a fragilidade dos argumentos originalmente elaborados em Inter Insigniores.

ORDINATIO SACERDOTALIS (1994)

Ainda mais do que nos dois documentos anteriores, a solução oferecida por Ordinatio Sacerdotalis renuncia completamente à perspetiva de Pacem in terris e centra-se numa dupla operação. Por um lado, pretende simplesmente reconhecer uma “doutrina definitiva” como sendo historicamente fundada na prática uniforme da vida da Igreja ao longo dos séculos. O testemunho de vida eclesial que atesta a “reserva masculina” na ordenação sacerdotal seria um vínculo que a Igreja não teria o poder de derrogar. Por outro lado, com a declaração explícita desta doutrina definitiva, vivida na história, mas nunca formalmente estabelecida, a autoridade do Papa João Paulo II reconhece a reserva masculina, da qual se diz que “pertence à constituição divina da Igreja”, através de uma sentença que deve ser considerada definitiva por todos os fiéis.

Este duplo nível é muito desconcertante, de modo muito especial para a teologia sistemática, uma vez que elimina a questão levantada em 1963 como consciência de que algo de novo se estava a manifestar, mas que, agora, era simplesmente ignorado. Deste modo, foi possível construir um “sistema” que torna a história irrelevante: se pretende apoiar-se, por um lado, em “factos históricos claros”, mas que não são incontestáveis ​​do ponto de vista histórico, e, por outro lado, numa doutrina que, apesar de tudo, não assume, do ponto de vista formal, a absoluta incontestabilidade e infalibilidade. Que a “reserva masculina” da ordenação sacerdotal faça parte da “constituição divina da Igreja” parece ser antes a escolha de uma polarização exasperada, uma forma de “erguer muros” face a uma realidade histórica que avança positivamente. Evidências não evidentes e exercício de uma autoridade não infalível e sem argumentos são dois aspetos de um “dispositivo de bloqueio” que prevalece sobre qualquer sábia consideração das novas oportunidades culturais, sociais e eclesiais que, hoje, não podem ser, de forma alguma, escondidas, removidas ou aceites acriticamente.

NOTA DO PREFEITO DA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (2018)

A última etapa desta breve resenha é a intervenção com a qual o Cardeal Luís Ladaria tentou, em 2018, superar as “confusões”, utilizando uma mescla de argumentos clássicos e novos, com o objetivo de dar um mínimo de profundidade a uma teologia que não pode reduzir-se simplesmente à repetição do magistério. Pode ter algum interesse a argumentação de natureza bíblica, baseada no princípio segundo o qual a Igreja deve obedecer a todas as palavras do Senhor. Porém, convém notar que, sobre este tema específico, a tradição não refere qualquer palavra do Senhor. Surpreende também a referência ao tema da “substância do sacramento da ordem”, já que não se constitui como prova conclusiva, apresentando-se como mera referência a uma explicação adicional considerada necessária, mas ausente nesta Nota. A única referência explícita oferecida pelo texto consiste numa expressão tirada do Concílio de Trento (“salva eorum substantia”), que deveria servir de apoio à impossibilidade de a Igreja modificar a substância do sacramento da ordem. O ponto frágil, porém, está no facto de que a citação do texto tridentino é retirada de uma passagem em que é reconhecida à Igreja o poder de “distribuir a comunhão” na Eucaristia apenas sob uma espécie, a do pão, apesar da palavra de Jesus referir explicitamente o pão e o cálice. A citação deveria apoiar a alegada ausência de autoridade da Igreja sobre o tema da ordenação sacerdotal de mulheres, apesar de, neste ponto, não haver qualquer palavra do Senhor. Do texto extrai-se, portanto, um argumento singular: sobre o que o Senhor falou detalhadamente, a Igreja reserva-se o poder de adaptar a tradição; sobre o que o Senhor nada disse, a Igreja acredita sentir-se definitivamente vinculada. Não será necessário insistir demasiado na fragilidade sistemática desta argumentação cuja pretensão é, supostamente, esclarecer dúvidas e tranquilizar a Igreja sobre o bom fundamento da sua doutrina.

DA NÃO INCLUSÃO À NÃO EXCLUSÃO: UMA VOCAÇÃO UNIVERSAL AO MINISTÉRIO ORDENADO

Há exatamente 30 anos, quando a publicação da carta apostólica Ordinatio sacerdotalis foi acompanhada pela “apresentação” do então Prefeito J. Ratzinger (nota8), afirmavam-se duas coisas bastante claras, mesmo se orientadas a apoiar uma leitura também bastante unilateral: uma declaração magisterial como a que estava contida no documento apresentava oficialmente a todos os católicos batizados o conteúdo da sua fé; porém, o “em quê” se deve crer não dispensa o “porquê” se deva crer, mesmo se este texto não aborda diretamente a questão, mantendo-a até a uma certa distância. À teologia cabia a tarefa de esclarecer a “reserva masculina” que se exprimia abertamente como uma necessidade para o futuro. Porém, não deixa de ser curioso que o trabalho teológico tenha apontado apenas numa direção, ou seja, só poderia apresentar argumentos a favor, devendo silenciar argumentos contrários.

Trinta anos depois, não temos qualquer teologia sobre a “reserva masculina” que não passe de uma “teologia da autoridade”, isto é, que repita continuamente o “quê” sem poder dar a menor justificação do “porquê”, mesmo que as razões apontadas pela declaração para a falta de autoridade do magistério não sejam intransponíveis. O que se pensava ser definitivo já não parece sê-lo. Deve continuar a ser aceite, mas não é claro nem convincente.

Perante este “impasse teológico”, é inevitável que a evolução da questão sofra uma reviravolta fundamental. A “negação da autoridade eclesial” já não pode ser interpretada no sentido da “exclusão”, mas deverá sê-lo no sentido de “inclusão”. O ónus da prova recai sobre quem pretende excluir. Se passados 30 anos ninguém foi capaz de responder à questão de forma fundamentada, a não ser repetindo argumentos pouco apresentáveis, será preciso reconhecer com simplicidade que a “falta de autoridade” não diz respeito à inclusão, mas à exclusão. Ou seja, a Igreja não pode excluir da ordenação os batizados, cuja autoridade pública foi oficialmente reconhecida a partir de 1963.

Abre-se, assim, espaço teórico e prático para configurar uma vocação universal ao ministério eclesial. Todos os batizados, homens e mulheres, podem aceder ao ministério ordenado, não porque tenham o direito (ninguém, nem homem nem mulher, tem direito a receber os sacramentos), mas porque o sexo feminino já não é visto como um impedimento ao exercício da autoridade, tanto na sociedade como na Igreja. Os impedimentos mantêm-se ao nível da incapacidade (por idade, por doença mental ou por outra interdição circunstancial). A necessidade de uma nova cultura jurídica, de uma nova cultura social e de uma nova cultura antropológica não é simplesmente “irrelevante” para a fé católica, mas estrutura a lógica da encarnação que a funda (nota9). Quando a Igreja Católica tiver amadurecido dentro de si mesma a transição da “sociedade da honra” para a “sociedade da dignidade” e tenha renunciado a interpretar-se como “societas inaequalis”, então, poderá assumir esta transição, não como uma infidelidade à tradição, mas como crescimento na consciência comum e como nova riqueza para o exercício do ministério eclesial de anúncio do Evangelho.

 

Notas:

1.Texto original escrito em italiano. Tradução de José Frazão Correia SJ. Agradece-se a Artur Morão a tradução do latim das citações de São Boaventura.
2. O debate que interessa atualmente ao mundo católico sobre o acesso da mulher ao ministério ordenado interessou às outras confissões (anglicanas, evangélicas e reformadas) entre os anos 50 e os anos 60 do século XX. Este dado não é apenas de uma questão confessional, mas uma questão cultural, social e antropológica que não pode ser desqualificada dizendo simplesmente que “isso é com eles”.
3. Esta distinção deve-se a Charles Taylor, na sua obra Il disagio della modernità (Roma–Bari: Laterna, 1994), 54-57. A sociedade em que surge uma nova urgência de reconhecimento é caracterizada por dois fenómenos. As hierarquias sociais, que eram a fonte da “honra” na sociedade do ancien régime, em que a honra está intrinsecamente ligada às desigualdades, são dissolvidas. A honra pertence a quem é diferente, não é de todos. Taylor cita a definição de honra de Montesquieu: «A natureza da honra está em exigir preferências e distinções», sendo a honra, portanto, sublinha Taylor, «uma questão de preferências» [p. 54]. A honra é uma forma de diferenciação e não é universal. A noção moderna de “dignidade”, no entanto, tem um significado universalista e igualitário, porque é intrínseca a todos os seres humanos ou, pelo menos, a todos os cidadãos. A afirmação da “dignidade universal” torna-se assim o princípio da sociedade democrática e implica uma progressiva marginalização do conceito de “honra”, quase até à sua incompreensão.
4. In hoc enim Sacramento persona, quae ordinatur, significat Christum mediatorem; et quoniam mediator solum in virili sexu fuit et per virilem sexum potest significari: ideo possibilitas suscipiendi ordines solum viris competit, qui soli possunt naturaliter repraesentare et secundum characteris susceptionem actu signum huius ferre.
5.Estes caminhos foram explorados em alguns trabalhos de H. U. von Balthasar, retomados depois nos documentos pontifícios Muliers dignitatem, primeiro, Inter Insigniores e Ordinatio Sacerdotalis, depois.
6. Sobre a discussão crítica da dialética entre o “princípio mariano” e o “princípio petrino” elaborada por von Balthasar, reenvio a M. Perroni, A proposito del principio mariano-petrino: per una metodologia della elaborazione-comunicazione dell fede che rispetti il dato biblico, in CATI, La fede e la sua comunicazione (Bologna: EDB, 2006), 93-116; Luca Castiglioni, Figlie e figli di Dio. Uguaglianza battesimale e differenza sessuale (Brescia: Queriniana, 2023), 159-189, e o texto recentíssimo de Lucia Vantini, “Oltre il principio, una costellazione di differenze”, in Lucia Vantini, Luca Castiglioni, Linda Pocher, “Smaschilizzare la chiesa”? Confronto critico sui “principi” di H. U. von Balthasar (Milano: Paoline, 2024), 11-32. [Sobre a temática, com referência a estes mesmos autores e obras, permitimo-nos reenviar para “As mulheres na Igreja, para lá de idealizações”, Brotéria 198–5/6 (2024): 430-438]
7. Para uma análise mais detalhada de cada um destes documentos, remeto para Andrea Grillo, L’accesso delle donne al ministero ordinato. Il diaconato femminile come problema sistematico (Cinisello Balsamo: San Paolo, 2024), 15-58.
8. Cf. Joseph Ratzinger, “La lettera apostolica Ordinatio sacerdotalis”, in L’Osservatore Romano, 08.06.1994, 1-6
9. Remeto passa para o ensaio interrogativo di Ghislain Lafont, “E’ possibile, in una materia in cui è coinvolta la storia, giungere a una verità infallibile?”, in G. Lafont, Un cattolicesimo diverso (Bologna: EDB, 2019), 65

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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