1. Como mel para a boca
O hino dos querubins é um dos mais emblemáticos cantos da liturgia ortodoxa. A letra é baseada nas palavras dos Serafins no capítulo 6 do livro de Isaías.
Eis uma magnífica versão francesa…
2. Um texto bíblico
No ano em que morreu o rei Uzias, vi o Senhor sentado num trono alto e elevado; as franjas do seu manto enchiam o templo. Os Serafins estavam diante dele, cada um tinha seis asas; com duas asas cobriam o rosto, com duas asas cobriam o corpo, com duas asas voavam. E clamavam uns para os outros:
– Santo, Santo, Santo, o Senhor do universo! Toda a terra está cheia da sua glória!
E tremiam os gonzos das portas ao clamor da sua voz, e o templo encheu-se de fumo. Então disse:
– Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o Rei, Senhor do universo!
Um dos Serafins voou na minha direcção; trazia na mão uma brasa viva, que tinha tomado do altar com uma tenaz. Tocou na minha boca e disse:
– Repara bem, isto tocou os teus lábios, foi afastada a tua culpa, e apagado o teu pecado.
Isaías 6,1-7
3. O esclarecimento
Palma de Ouro do festival de Cannes em 1979, Apocalipse Now, realizado por Francis Ford Coppola, retrata a guerra do Vietname numa atmosfera de fim do mundo. O título tem, obviamente, raízes bíblicas.
O texto que vos apresentamos hoje é um apocalipse. A palavra “apocalipse” vem do grego apocaluptein que significa “descobrir”, “desvelar”. Um apocalipse é um desvelamento, uma revelação das realidades celestes a um ser humano, normalmente através de uma visão.
Há muitos apocalipses na Bíblia. Os mais célebres encontram-se no livro do Apocalipse, o último livro do Novo Testamento. Este livro apresenta visões celestes do fim dos tempos. É, por isso, que o termo “apocalipse” foi adquirindo pouco a pouco o sentido popular de fim dos tempos, e mesmo de catástrofe, ainda que esse não fosse o seu significado original.
Interior da catedral de São Salvador (1655-1664), Ishafan, Irão. No Oriente, as igrejas estão cobertas por frescos e mosaicos que representam os santos e as criaturas celestes. Quem entra na igreja é convidado a viver uma experiência celeste, cativado pela beleza sensível do lugar e pela representação daqueles que já habitam nos céus.
Os apocalipses ou visões celestes influenciaram de forma substancial as liturgias cristãs. As palavras dos Serafins que nos são transmitidas por Isaías no capítulo 6 são utilizadas tanto no Oriente como no Ocidente em cada liturgia eucarística: “Santo, Santo, Santo, o Senhor”.
As liturgias cristãs têm como fonte de inspiração a revelação bíblica: as suas raízes encontram-se nas visões celestes. Para os crentes, a liturgia não é obra das mãos humanas, nem simples fruto de uma tradição humana, mas escuta e reprodução visível e audível de uma mensagem revelada.
O crente é chamado a não se contentar com um rito apenas terrestre, mas a saborear aqui e agora as belezas celestes, cada vez que retoma as palavras dos Serafins. É o que fazem os cristãos ortodoxos quando entoam o hino dos Querubins: “Nós que, neste mistério, representamos os Querubins e cantamos o hino ao Três vezes Santo”. Enquanto o canto ressoa na igreja, o sacerdote incensa o altar e o fumo eleva-se no edifício, à imagem do “templo que se enche de fumo”, na descrição de Isaías.
O diácono incensa o bispo durante uma liturgia bizantina. A arquitectura fechada das igrejas bizantinas não deixa passar nenhuma luz além daquela quem desce do céu através das janelas da cúpula. A liturgia desdobra-se como uma floresta de símbolos.
4. E ainda uma palavra final…
O lugar divino, esse lugar onde se encontra o Ser, foi um objecto permanente de especulação para os filósofos da Antiguidade. Contudo, Platão lamenta-se em Fedro:
“Este lugar que se encontra acima do céu, nenhum poeta, entre aqueles cá de baixo, ainda cantou um hino em sua honra, e nenhum cantará em sua honra um hino que lhe seja digno”.
Claramente, Platão não conhecia nem o hino dos Querubins, nem o capítulo 6 de Isaías. A sua reflexão sobre o lugar celeste põe em evidência um contraste importante entre a visão platónica e a perspectiva bíblica: para uns, Deus é incognoscível, inacessível; para outros, Ele mesmo se dá a ver, Ele mesmo se deixa contemplar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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