Nos últimos meses, enfrentei a morte numa sucessão de partidas, mais ou menos inesperadas.
Quando isto acontece, quando entro em espaços de silêncio, em antecâmaras ruidosas, em igrejas cheias ou pequenas capelas quase vazias, tenho sempre a sensação de que é possível afastar-me de tudo, cumprir o que a educação pede, ou pelo contrário, olhar de frente para a morte, sentir a sua realidade, o seu vazio.
E se perto de mim estiver um amigo, se alguém sofrer ao meu lado, em silêncio ou não, chegam-me à memória as histórias partilhadas, a vida vivida, os abraços, as palavras, os gestos. O que me tem feito pensar sobre a dimensão da amizade.
Sempre que testemunhamos a partida de alguém, há um amigo que parte e outro, ou outros ou tantos outros, que ficam. Sempre que um amigo parte, percebemos com renovada clareza a dimensão da amizade que nos une. É verdade que a palavra amizade implica sempre um grau de proximidade, um desejo de presença, um sentimento de confiança. Mas as amizades não são todas iguais, graças a Deus. São tão diferentes, como as flores de um campo na Primavera. Algumas são frágeis e tombam com um sopro de esquecimento, de zanga ou vaidade. Outras são resistentes ao tempo, aos silêncios e à distância. Umas enchem-nos de breves alegrias, outras permanecem, naquele encanto de nos sabermos queridos por alguém.
Sempre que testemunhamos a partida de alguém, há um amigo que parte e outro, ou outros ou tantos outros, que ficam. Sempre que um amigo parte, percebemos com renovada clareza a dimensão da amizade que nos une.
Nos últimos meses, vivi e senti toda esta diversidade. Perante quem acabou de partir, perante os que ficaram, perante as memórias daqueles que já partiram há muito, ou de quem tenho a meu lado. Não sei bem descrever como sofri. Tomou-se por próprio o facto de não chorarmos nos funerais. Não chorei em nenhum. Só a emoção breve de um cântico, de um abraço. Mas o meu coração encheu-se de histórias, o passado tornou-se presente, as palavras voltaram, sempre novas para repetir os mesmos sentimentos.
E de todos aqueles momentos, manhãs e tardes de frio e calor, ainda hoje fico parada numas das mais belas histórias de amizade que vivi, que vivo até hoje. Era tão nova quando nos conhecemos. Um casal novo e feliz confiou-me os seus filhos, enquanto celebravam anos de casados, num restaurante perto de casa, ano após ano. Veio o tempo que traz consigo venturas e desventuras. Quando dei por mim, era eu quem lhes confiava a minha filha pequenina, nós as duas entregues aos seus cuidados. São laços inquebráveis, estes que se fazem nas alegrias e nos sofrimentos. Dizia muitas vezes que eram um exemplo de vida, uma história de Amor daquelas com que todos sonhamos, porque existem filhos e netos, porque as casas estão sempre de portas abertas, porque se fala alto e se lê poesia. Porque cheira bem e a mesa é sempre posta com cuidado. Porque há flores nas jarras e corações nas janelas. Porque se tratava de Deus, se falava Dele com a proximidade de quem se conhece, de quem se ama. Sempre existiram sofrimentos e dores, incompreensões e desilusões. Não era, não é um mundo perfeito que se possa mostrar por aí, como quem vende alguma coisa. Mas era e é a casa dos meus Amigos.
Mais tarde, quando lá voltei, já sem o ver sentado no seu canto, as almofadas ainda marcadas pelo seu estar, fiquei de mãos dadas com a sua eterna noiva, de sorriso fácil e mãos sempre ocupadas no tricotar veloz de quem sabe o que faz. E contámos as mesmas histórias, repetimos o passado que nos une, aquela amizade que resiste ao tempo, aos silêncios e às distâncias. Que permanece intacta, porque há laços que não quebram.
O Amor consegue ultrapassar o limite do tempo, a banalidade dos dias que não param. E acontece, e permanece.
De tudo o que falámos, o que até hoje mais me comove foi a certeza de que o Amor não fica por aqui, vivido na história de duas vidas que se cruzam, que se apaixonam, casam, têm filhos e netos. O Amor consegue ultrapassar o limite do tempo, a banalidade dos dias que não param. E acontece, e permanece. O Amor que uniu durante décadas os meus Amigos continua intacto, extraordinário, imenso. O Amor não acaba com a morte. O Amor conhece a terra e o céu.
Histórias raras. Pode ser que sim. Mas precisamos delas, como a terra seca nos pede água. Porque o “vede como eles se Amam”, que Jesus nos pede, é tão vasto, tão imenso…e só Deus sabe o bem que nos faz. No céu, o Carlos vela pela sua noiva, pelos seus, com a mesma alegria, graça e determinação com que o fez durante a sua vida. Na terra, a Guida vela pelos seus, com a mesma alegria, graça e determinação com que o fez, enquanto estavam os dois, sentados lado a lado, na distância breve do toque das suas mãos.
Na terra e no céu. Só com Deus, só com Deus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.