No passado dia 16 de março, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) publicou uma resposta (Responsum) à questão que lhe fora levantada sobre se “pode a Igreja abençoar uniões de pessoas do mesmo sexo”. A resposta negativa apresentada pela CDF não representa qualquer surpresa ou novidade, tendo em conta o que estabelece o Catecismo da Igreja Católica (CIC) quanto às relações entre pessoas do mesmo sexo. No seu n.º 2357, o CIC afirma que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados” e, portanto, “não podem em caso algum ser aprovados”. Nesse mesmo sentido, o Responsum afirma que apenas são compatíveis com a essência de uma bênção dada pela Igreja “aquelas realidades que de per si são ordenadas a servir os desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo Senhor”. Apesar disso, o mesmo documento reconhece a presença, nas relações entre pessoas do mesmo sexo, “de elementos positivos, que em si são dignos de ser apreciados e valorizados”.
O teor deste documento acaba por revelar o carácter problemático de alguns aspetos da doutrina católica sobre a sexualidade humana, à luz do paradigma eclesial e teológico resultante do Concílio Vaticano II e do próprio pontificado de Francisco, cujo estilo tem sido claramente marcado por uma atitude de escuta atenta da realidade humana e de acolhimento. Por diversas vezes, tal como acontece na Exortação Apostólica Amoris Laetitia (AL), 296, o Papa tem pedido que se evitem “juízos que não tenham em conta a complexidade das situações” e que não tenham em conta “o modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição”.
O Vaticano II e a emergência de um novo paradigma eclesial
É certo que a Igreja é marcada por uma continuidade que se manifesta na fidelidade à Verdade fundamental da nossa fé: a contínua revelação do amor de Deus, cuja plenitude se realizou na vida de Jesus Cristo, tal como nos é transmitida pelos Evangelhos. Embora esta Verdade tenha sido revelada de uma vez por todas na pessoa de Jesus Cristo, a nossa apreensão dela é progressiva e dinâmica e, por isso, não pode permanecer inalterada. Por conseguinte, o Magistério da Igreja está, também ele, ao serviço dessa Verdade, não sendo seu exclusivo detentor. Aliás, é esse “serviço à Verdade” que lhe confere um papel incontornável na transmissão e tradução dessa revelação à Igreja.
Atendendo a isto, o Vaticano II operou uma verdadeira mudança de paradigma no modo como a Igreja se concebe a si mesma e como se relaciona com o mundo no qual se integra, bem como no modo como se formula a doutrina. No Discurso solene de abertura do Concílio, o Papa João XXIII afirmara que “o magistério tem um carácter prevalentemente pastoral”. Deste modo, o “Papa bom” reconheceu que a doutrina, para ser fiel à sua função de transmitir a boa notícia do amor salvífico de Deus revelado em Jesus Cristo, não pode conceber-se como um compósito de verdades abstratas e imutáveis e sem qualquer hierarquia entre elas, qual bloco monolítico que lançamos sobre a vida das pessoas, mas tem que se deixar iluminar pela própria realidade, e ter seriamente em conta aqueles a quem se propõe. Tal como afirma o proémio de Gaudium et Spes (GS): “a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”. Portanto, a história e vida daqueles a quem se destina a doutrina – porque precisamente nelas Deus também se revela – não só não pode ser ignorada na formulação doutrinal, mas constitui precisamente uma das suas fontes.
Falando da experiência de Santo Afonso, o Papa afirma “a teologia moral não pode refletir apenas sobre a formulação de princípios, de normas, mas é necessário que se encarregue propositivamente da realidade que ultrapassa qualquer ideia (cf. EG, n. 231).
Ainda no passado dia 23 de março, já após a publicação do Responsum, a propósito do 150º aniversário da proclamação de Santo Afonso Maria de Ligório como doutor da Igreja, o Papa Francisco demonstrou mover-se neste paradigma eclesial e teológico. Falando da experiência de Santo Afonso, o Papa afirma “a teologia moral não pode refletir apenas sobre a formulação de princípios, de normas, mas é necessário que se encarregue propositivamente da realidade que ultrapassa qualquer ideia (cf. EG, n. 231). Isto representa uma verdadeira prioridade (cf. EG, nn. 34-39) porque o conhecimento apenas dos princípios teóricos, como o próprio Santo Afonso nos lembra, não é suficiente para acompanhar e apoiar as consciências no discernimento do bem a ser feito”.
Quase sessenta anos passados do Concílio, ainda se nota uma grande resistência na assunção deste novo paradigma por parte do Magistério, no que se refere a alguns temas. Na sua doutrina social e política, a Igreja tem sabido perscrutar os sinais de Deus que emergem na história humana e social e nas ciências humanas, mesmo antes do Vaticano II. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com a democracia ou os direitos humanos. Se inicialmente o Magistério olhou para estas propostas com alguma desconfiança, com o passar dos anos – precisamente por atender à realidade – não só as aceitou como hoje as proclama como instrumentos indispensáveis na vida social e política, para promoção da dignidade da pessoa humana e do bem comum. Noutros aspetos, porém, este novo paradigma tem encontrado algumas dificuldades na sua implementação.
Quase sessenta anos passados do Concílio, ainda se nota uma grande resistência na assunção deste novo paradigma por parte do Magistério, no que se refere a alguns temas.
Resistências à implementação do novo paradigma – o caso da moral sexual
No campo da visão cristã sobre a sexualidade humana – e da doutrina daí decorrente – apesar dos passos já dados no sentido de a entender como dimensão constitutiva da pessoa (e não apenas como um aspeto funcional, com vista à procriação, como assim foi concebida durante séculos), a resistência ao novo paradigma tem sido grande. O caso das relações entre pessoas do mesmo sexo é disso sinal.
Nas últimas décadas, a visão das ciências humanas e da sociedade sobre a homossexualidade tem conhecido uma rápida mudança. Embora o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo seja conhecido por grande parte das sociedades humanas em todos os tempos, a ideia de orientação afetiva, emocional, erótica, espiritual e sexual de uma pessoa em relação a uma outra do mesmo sexo, como variante da sexualidade humana, é algo muito recente na história das ciências humanas. Ainda mais recente é o reconhecimento social e político da possibilidade de uma relação de mútua doação, estável e duradoura, entre pessoas do mesmo sexo.
O Magistério, deixando-se interpelar pela realidade, reconhece que uma pessoa possa ter uma inclinação homossexual e afirma que tal pessoa tem que ser acolhida pela Igreja com “respeito, compaixão e delicadeza” (CIC, 2358). O próprio Responsum da CDF – no seguimento da AL – propõe que se ofereçam às pessoas homossexuais “caminhos de crescimento na fé, «para que (…) possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida»”. No entanto, no que se refere à prática de atos afetivos com algum tipo de expressão sexual entre pessoas do mesmo sexo (ou, em geral, entre pessoas não unidas pelo matrimónio), nega-se tal possibilidade, por considerar esses atos “não ordenados ao desígnio do Criador” (Responsum da CDF).
Esta é a razão pela qual, como já vimos, o recente Documento da CDF exclui também a possibilidade de a Igreja abençoar liturgicamente as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Apesar de reconhecer “a presença, em tais relações, de elementos positivos, que em si são dignos de ser apreciados e valorizados”, a CDF não consegue abrir mão do argumento de que tais relações são desordenadas em relação aos desígnios do Criador, acabando mesmo por se contradizer. Se por um lado reconhece a possibilidade destes elementos positivos a valorizar, mais adiante afirma que a Igreja “não abençoa nem pode abençoar o pecado”.
Por conseguinte, o Responsum da CDF vem por a descoberto a dificuldade para a doutrina católica sobre a sexualidade humana em geral, e sobre a homossexualidade em particular, de abandonar o velho paradigma pré-conciliar no qual a verdade era concebida como uma ideia abstrata, inscrita numa determinada conceção da natureza, que o magistério – seu detentor exclusivo – se limitava a aplicar dedutivamente à vida dos fiéis.
Ora, no Concílio Vaticano II a Igreja apercebeu-se que as coisas já não funcionavam assim; e que não era pela força da repetição de um argumento, ou por se fechar numa muralha qual societas perfecta, que a Igreja iria conferir credibilidade aos seus ensinamentos e, desse modo, contribuir para a santificação do povo de Deus. Por isso mesmo se decidiu a “investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas” (GS, 4). Deste modo, como afirmei acima, a doutrina não pode ser formulada sem atender à realidade, onde o Espírito do Ressuscitado age e onde Cristo também se revela, por vezes dos modos mais inesperados.
O último Responsum da CDF, ao fundamentar-se numa doutrina que pertence a um paradigma eclesial antigo, é bastante revelador da dinâmica própria de um processo de mudança de paradigma. Na verdade, quando um novo paradigma surge, as teorias baseadas no modelo anterior não conseguem impor-se senão através da repetição argumentos circulares. Por esse motivo, tal como acontece nos últimos documentos exarados pelo Magistério sobre o tema da homossexualidade, a CDF limita-se a repetir o mesmo argumento: “as relações homossexuais são desordenadas porque não correspondem ao desígnio de Deus, tal como nos é revelado pelas Escrituras”. Mas isso encontra fundamento na realidade? Será mesmo verdade que nenhuma dessas relações corresponde ao desígnio de Deus sobre o amor e a sexualidade humanas? De facto, este mesmo argumento do “desígnio de Deus”, quando não confrontado e discernido a partir da realidade onde Deus também se revela, foi usado ao longo da história para, por exemplo, condenar as teorias de Galileu, ou para afirmar a superioridade do homem em relação à mulher, entre muitos outros.
Para tal, é urgente retirar da clandestinidade as pessoas homossexuais e os grupos pastorais e movimentos que se dedicam a esta tarefa de acolhimento, acompanhamento e integração dessas pessoas, quer vivam ou não numa relação.
Discernir os sinais de Deus na realidade das relações entre pessoas do mesmo sexo
Deste modo, a única via de saída para este impasse em que nos encontramos, e que deixa muitos agentes pastorais desconfortáveis quando se confrontam com a história concreta das pessoas, consiste precisamente em discernir quais as sementes da Verdade presentes nas relações, também com expressão sexual, entre pessoas do mesmo sexo. Se o próprio documento em análise considera a presença nestas relações de elementos positivos a serem valorizados, então o trabalho da Igreja deve ser o de perscrutar, à luz do Evangelho, se nesses elementos positivos estão presentes aquelas sementes do verdadeiro amor cristão, sem com isso ter que equiparar tais relações ao matrimónio. Para tal propósito, torna-se necessário, antes de mais, que as histórias e as vidas das pessoas que vivem em relações com outras do mesmo sexo sejam, pelo menos, visíveis e reconhecidas pelas comunidades católicas e pelos seus pastores.
Ainda no Angelus do passado domingo, 21 de março, já após a publicação do referido documento, o Papa Francisco apelava aos cristãos e às comunidades a serem testemunho do “estilo de Deus” que é “proximidade, compaixão e ternura”, evitando todas as “condenações teóricas” e “moralismos clericais” e “lançando sementes de amor (…) com exemplos concretos, simples e corajosos”. Nesse sentido, a grande tarefa dos agentes pastorais – leigos e ministros ordenados – relativamente a este âmbito, terá necessariamente que passar pela concretização do apelo feito pelo Sínodo dos Bispos sobre a Juventude, também mencionado no Responsum, à criação e desenvolvimento de “percursos de acompanhamento na fé de pessoas homossexuais” nos quais as pessoas sejam “ajudadas a ler a sua história, aderir livre e responsavelmente ao seu chamamento batismal, reconhecer o desejo de pertencer e contribuir para a vida da comunidade, discernir as melhores formas para o concretizar.” (Documento final, 150).
Para tal, é urgente retirar da clandestinidade as pessoas homossexuais e os grupos pastorais e movimentos que se dedicam a esta tarefa de acolhimento, acompanhamento e integração dessas pessoas, quer vivam ou não numa relação. Embora este documento exclua a possibilidade de abençoar liturgicamente tais uniões, como modo de realizar este acompanhamento na fé, ele acaba por – pela primeira vez por parte da CDF – sancionar o acolhimento e acompanhamento de pessoas homossexuais, através de “caminhos de crescimento na fé”, para que “possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida”. Nesse sentido, um documento que tem sido tão criticado pela sua rigidez, acaba por constituir um verdadeiro desafio à Igreja que caminha em Portugal (e não só!), que tem ainda tantos passos para dar quanto a este ponto.
De facto, a eventual correspondência aos desígnios do Criador das relações sexuais entre seres humanos não pode buscar-se, antes de mais, no sexo das pessoas envolvidas na relação. Isto porque, como afirmava o Papa João Paulo II na Encíclica Familiaris Consortio, 11, “a sexualidade não é de modo algum algo puramente biológico, mas diz respeito ao ser mais íntimo da pessoa humana enquanto tal”. Portanto, tal correspondência há de procurar-se antes na capacidade de as pessoas envolvidas numa relação responderem ao desafio universal de viverem a sua sexualidade e ordenarem as suas paixões de uma forma que contribua para o seu progresso na santidade, ou seja, na identificação com Cristo.
Um elemento ambivalente numa Igreja onde “a realidade é superior à ideia” (EG, 233), que procura ajudar cada um a “encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus no meio dos limites” (AL, 305).
A ambivalência causada pela resposta da CDF
Este Responsum da CDF acaba por pôr a nu, uma vez mais, a fragilidade e a desadequação de alguns aspetos importantes da doutrina católica sobre a sexualidade para os homens e mulheres do nosso tempo. Ao negar que a Igreja possa dizer bem (bendizer, abençoar) da união de duas pessoas do mesmo sexo que procuram responder o melhor que podem ao Evangelho, este documento pode constituir um verdadeira pedra de tropeço para muitos irmãos e irmãs que, como membros do Corpo de Cristo, procuram trazer à luz, da forma melhor que lhes é possível, o modo como se compreendem diante de Deus. As reações negativas a este documento, mesmo por parte de membros da hierarquia e de teólogos, em diversas partes do mundo, são disso sinal. Na verdade, como afirma o Papa Francisco, devido à rigidez de determinados ensinamentos ou práticas que não têm em conta a situação real das pessoas, podemos estar a fechar “o caminho da graça e do crescimento, e a desencorajar caminhos de santificação que dão glória a Deus” (AL, 305) para muitas filhas e filhos amados de Deus.
Mas o Responsum representa sobretudo um elemento de grande ambivalência numa Igreja em mudança, uma Igreja que o Papa Francisco tem incentivado a ser hospital de campanha, mãe de coração aberto, sempre pronta a alegrar-se e a abençoar os pequenos passos que os seus filhos dão em direção à Verdade, que é a união com Cristo. Um elemento ambivalente numa Igreja onde “a realidade é superior à ideia” (EG, 233), que procura ajudar cada um a “encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus no meio dos limites” (AL, 305), que acompanha “com misericórdia e paciência as eventuais etapas de crescimento pessoal à medida que estas vão aparecendo, abrindo espaço para a misericórdia do Senhor, que nos impele a fazer o nosso melhor” (AL, 308)
No entanto, e por paradoxal que pareça, este documento acaba por constituir uma notável oportunidade para, como Igreja, decidirmos escutar o que tanta gente de boa vontade nos está a dizer sobre a sua orientação sexual e, através da oração, da reflexão e do discernimento, encontrarmos meios que nos permitam um melhor acolhimento das vidas das pessoas homossexuais no seio das nossas comunidades.
Fotografia: Daniel-Mccullough – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.