Talvez aliada ao desejo, justo e compreensível, de promover a dignidade das mulheres através de medidas concretas que evitem a sua discriminação na sociedade e nas instituições que a compõem, a polémica da “ordenação das mulheres” parece ter regressado. Prova disso são as mais recentes declarações do atual arcebispo de Hamburgo, Stefan Hesse. Segundo este prelado católico, a questão da ordenação das mulheres deve ser repensada e “discutida abertamente”.
Em França, Anne Soupa apresentou, aos 73 anos de idade, uma espécie de candidatura – não sei como lhe chamar… – para o cargo de Arcebispo(a) de Lyon. E mesmo aqui, no nosso Portugal, o recém-nomeado presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, pareceu aceitar que o assunto estivesse aberto a alguma discussão, ao dizer que “não se pode pretender que o problema não existe. Há que confrontá-lo com a reflexão da própria Igreja e com a sua experiência para ir encontrando caminhos” (cf. Entrevista ao Público de 21 de junho de 2020). Os protagonistas deste debate procuram soluções para a crise que a Igreja hoje atravessa. Não se trata apenas de integrar as mulheres nos mais variados papéis sociais e eclesiais. Procura-se, além disso, encontrar estruturas eclesiais alternativas que sejam capazes de evitar os abusos de poder, e não só, que alguns membros do clero perpetraram impunemente.
Não se trata apenas de integrar as mulheres nos mais variados papéis sociais e eclesiais. Procura-se, além disso, encontrar estruturas eclesiais alternativas que sejam capazes de evitar os abusos de poder, e não só, que alguns membros do clero perpetraram impunemente.
Creio que vale a pena (re)ler, neste contexto, o artigo que C. S. Lewis redigiu aquando da discussão do tema no seio da Igreja Anglicana, na sua Inglaterra natal, em meados do século passado. Em Priestesses in the Church? (cf. God in the Dock (Eerdmans Publishing Company 1970), pp. 255-262), Lewis posiciona-se contra a ordenação das mulheres, alertando as autoridades da Igreja a que pertencia para não darem esse “passo revolucionário”. Qualificando a medida como “revolucionária” e de uma “extrema imprudência”, Lewis considera que esse passo romperia radicalmente “com a Tradição”, pois tal prática não encontra qualquer “base na Revelação”.
É interessante notar o quanto as declarações de Lewis se aproximam, a este respeito, do Magistério de São João Paulo II. Talvez sem conhecer o texto de Lewis – mas certamente enraizado na Tradição cristã –, o Papa polaco citou o seu predecessor Paulo VI, para reafirmar que “a Igreja não se considera autorizada a admitir as mulheres à ordenação sacerdotal”, visto que Cristo deu “à Igreja a Sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica”, que foi “sempre seguida pela Tradição” (Ordinatio Sacerdotalis, 22 de maio de 1994, §2, citando Paulo VI, Alocução “Il ruolo della donna nel disegno di Dio” de 30 de janeiro de 1977).
Não se trata simplesmente de reconhecer que no grupo dos doze Apóstolos, escolhidos por Cristo, não havia mulheres. Trata-se, mais do que isso, de reconhecer que, para além da escolha tomada pelo Cristo dos Evangelhos, os Apóstolos e seus sucessores permaneceram fiéis a essa opção. É a Sagrada Escritura, no seu corpus neotestamentário, que claramente atesta essa escolha por parte tanto de Cristo como da Igreja primitiva. Estamos, portanto, diante de uma escolha contida no depositum fidei, isto é, na vida de Cristo e na Tradição Apostólica. Por isso, contrariamente à escolha de gentios, isto é, de homens não judeus, para o ministério presbiteral, a ordenação das mulheres não consta naquilo que habitualmente designamos por Tradição Apostólica. É por isso que São João Paulo II considera que a Igreja não se sente “autorizada” a mudar essa prática. E é por isso que, na qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Luis Ladaria, SJ reiterou “que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres” e que “esta é uma verdade que pertence ao depósito da fé” (A propósito de algumas dúvidas sobre o caráter definitivo da Doutrina da Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, 30 de Maio de 2018).
Não se trata simplesmente de reconhecer que no grupo dos doze Apóstolos, escolhidos por Cristo, não havia mulheres. Trata-se, mais do que isso, de reconhecer que, para além da escolha tomada pelo Cristo dos Evangelhos, os Apóstolos e seus sucessores permaneceram fiéis a essa opção.
Além disso, tal como Lewis já notava no seu texto, o sacramento está ligado a uma antropologia. A imagem da complementaridade entre a mulher e o homem, cuja união constitui o matrimónio cristão, reflete, segundo Lewis, a comunhão de Cristo-esposo com a Sua Igreja-esposa. No entender de Lewis, se se ordenassem mulheres pôr-se-ia seriamente em causa esta imagem bíblica (e a antropologia subjacente), a partir da qual a Tradição da Igreja sempre tendeu a ver no presbítero aquele que se identifica primeiramente com Cristo-esposo. É com este termo da relação, concebida a partir da mística esponsal, que o sacerdote se identifica sempre que age in persona Christi, especialmente quando celebra a Eucaristia. Pode soar-nos estranho que se aplique a imagem esponsal assim, de um modo mais realista do que propriamente metafórico. E até podemos intuir os vários problemas de cariz teológico que uma tal leitura suscita. Contudo, o Magistério atual parece integrar essa visão teológica e antropológica. Prova disso encontra-se no recente pronunciamento do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no qual o jesuíta Luis Ladaria confirma, já durante o Pontificado de Francisco, a Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis: “o sacerdote (…) age na pessoa de Cristo, esposo da Igreja, e o seu ser homem é um elemento indispensável desta representação sacramental” (A propósito de algumas dúvidas sobre o caráter definitivo da Doutrina da Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, 30 de maio de 2018).
Por último, o autor britânico considera perigoso instrumentalizar e adaptar os sacramentos em função de sensibilidades e sociologias de época. Basicamente, trata-se do risco da mundanização de uma Igreja que correria assim o risco de parecer ser uma mera construção humana. É por tudo isso que Lewis considera, não sem exagero, que a “ordenação das mulheres” nos conduziria a uma “religião diferente”.
Perante o ressurgir do tema, gostaria de deixar algumas breves observações.
mesmo que se considere serem simplistas ou insuficientes os argumentos que a Tradição foi encontrando para justificar esta prática de Cristo e da Igreja até aos nossos dias, convém assumir que o ónus da prova – se me permitem recorrer a uma terminologia de caráter jurídico – está do lado daqueles que querem a mudança.
Primeiro, mesmo que se considere serem simplistas ou insuficientes os argumentos que a Tradição foi encontrando para justificar esta prática de Cristo e da Igreja até aos nossos dias, convém assumir que o ónus da prova – se me permitem recorrer a uma terminologia de caráter jurídico – está do lado daqueles que querem a mudança. Não é uma prática que se mantém desde Cristo até aos nossos dias que tem propriamente de se justificar. Nem é de ânimo leve que a Tradição introduzirá modificações no Sacramento da Ordem em prol de uma prática que não consta no depositum fidei e que, talvez, até o contradiga. Podemos até julgar que não faça sentido interpretar a imagem esponsal, qual metáfora, tão literalmente. E é claro, bem o sabemos, que a Tradição foi capaz de discernir práticas e ensinamentos, ao longo da História da Igreja, que não constam diretamente nos Evangelhos, sem se ter tornado por isso infiel a Cristo ou ao seu Espírito. Que a Igreja não estagne no passado, isso deve estimular-nos a refletir abertamente sobre os mais variados temas. Mas um passo no sentido da “ordenação das mulheres” exigiria uma sólida argumentação e clareza, sobretudo a nível teológico, que não se limitasse a minorar os argumentos da posição contrária.
Também não vale a pena situar-se no debate como se a Igreja estivesse dividida entre os que rejeitam qualquer mudança por rigidez e os que se mostram abertos a tudo o que possa vir. Quando estamos diante dos sacramentos, o esquema conservadores-progressistas não ajuda. Seria, por isso, necessário que a questão pudesse amadurecer pacientemente, numa Igreja capaz de discernir para além dos clubismos e das ideologias.
Além disso, para que o debate seja verdadeiramente aberto e frutífero, para que haja verdadeiro discernimento, a escuta humilde do Magistério é absolutamente imprescindível. Nesse sentido, mesmo que a declaração de João Paulo II não obedeça aos exatos ditames de uma “formulação dogmática”, não se deve tomar com ligeireza a afirmação final da Ordinatio Sacerdotalis: “Para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”. Trata-se, com efeito, de uma declaração muito forte e clara que foi, aliás, reiterada pelo Papa Francisco. De facto, em entrevista a Luigi Maria Epicoco, o atual Sumo Pontífice declarou que partilha da opinião de São João Paulo II e que, quanto a este tema, sublinha a palavra “definitivo” usada pelo seu predecessor (cf. Giovanni Paolo Magno (San Paolo 2020), pp. 74-75, 93-94). O Papa Francisco reconhece, apesar de tudo, que “as reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente”. Não obstante, ele prossegue na linha dos seus predecessores, ao afirmar que “o sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão”. E acrescenta que essa questão pode tornar-se “particularmente controversa” quando se “identifica demasiado a potestade sacramental com o poder” (Evangelii Gaudium, nº. 104).
Quando entramos neste debate – como se espera, abertos ao Espírito –, convém evitar quaisquer dualismos entre o Espírito Santo e o Magistério da Igreja ou, mais precisamente, petrino. Pois o Espírito também sopra naquilo que os Papas nos dizem. Nesse sentido, para quem segue de perto o Magistério da Igreja, não é de todo expectável que a Igreja tome uma decisão como a da “ordenação presbiteral das mulheres” nos tempos que se avizinham.
Quando entramos neste debate – como se espera, abertos ao Espírito –, convém evitar quaisquer dualismos entre o Espírito Santo e o Magistério da Igreja ou, mais precisamente, petrino. Pois o Espírito também sopra naquilo que os Papas nos dizem.
Por outro lado, olhando para as mais recentes estatísticas anunciadas pela Igreja de Inglaterra, reparamos que, em 2019, foram, pela primeira vez na história, ordenadas mais mulheres do que homens, a ponto de se esperar que, num futuro próximo, o número de mulheres “padres” venha a superar o dos homens naquela comunidade anglicana. A generalidade dos media, inclusive os de etiqueta católica, transmitiu-nos a notícia de forma laudatória. A posição compreende-se tendo sobretudo em conta a constituição de uma Igreja, ou mais precisamente, de um clero cada vez mais igualitário no que à paridade de sexos diz respeito.
Na verdade, porém, convém referir que a Igreja nunca viu a ordenação presbiteral como um privilégio que implicasse uma discriminação de quem não é ordenado. No esclarecimento que deu sobre o tema, o ex-Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, insistiu que a admissão ao Sacramento da Ordem não torna mais digno o presbítero. Tal como D. José teve ocasião de esclarecer, nos “primeiros tempos da Igreja é notória a harmonia entre o facto de o sacerdócio apostólico ser conferido a homens e a importância e dignidade das mulheres na Igreja”. Nesse sentido, tal como afirma João Paulo II, “o facto de Maria Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, não ter recebido a missão própria dos Apóstolos nem o sacerdócio ministerial, mostra claramente que a não admissão das mulheres à ordenação sacerdotal não pode significar uma sua menor dignidade nem uma discriminação a seu respeito, mas a observância fiel de uma disposição que se deve atribuir à sabedoria do Senhor do universo” (Ordinatio Sacerdotalis, §3). Na esteira de João Paulo II, o Papa Francisco vem afirmando que não é necessário admitir mulheres ao Sacramento da Ordem para lhes reconhecer toda a sua dignidade.
Mais ainda: Francisco teme que a “ordenação das mulheres” esconda em si o perigo do clericalismo. Observar o que está a acontecer às comunidades cristãs que enveredaram pela “ordenação das mulheres” pode ajudar ao discernimento da Igreja, ainda em preparação para o novo milénio. A questão que, talvez, se coloque seja a de saber se não estarão as autoridades anglicanas a clericalizar a Igreja em geral e as mulheres em particular. Talvez não. Mas é uma análise que poderemos fazer. Compreendo que seja difícil aceitar que a admissão das mulheres às Ordens sacras configure inevitavelmente uma solução clericalista. No entanto, parece ser essa a interpretação do Papa, sobretudo quando nos convida “a alargar o horizonte para evitar reduzir a nossa compreensão da Igreja a meras estruturas funcionais”. Pois “este reducionismo levar-nos-ia [segundo Francisco] a pensar que só se daria às mulheres um status e uma participação maior na Igreja se lhes fosse concedido acesso à Ordem sacra. Mas, na realidade, este horizonte limitaria as perspetivas, levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do que elas já deram e subtilmente causaria um empobrecimento da sua contribuição indispensável” (Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazónia, 2 de fevereiro 2020, §100).
Para todos os efeitos, o debate sobre a “ordenação das mulheres” parece ter regressado, pelo menos no norte da Europa, e a Igreja continua a fazer caminho. Da minha parte, não digo que a questão do papel da mulher na Igreja não se coloque ou que seja de menor importância. Como sinal dos tempos, a necessidade de promover o papel das mulheres nos mais variados âmbitos sociais e eclesiais deve ser aprofundada e discernida. Parece-me, contudo, que será possível e desejável encontrar alternativas à ordenação das mulheres, em fidelidade à Tradição viva da Igreja. Alternativas que promovam a participação das mulheres nos vários âmbitos da vida eclesial, evitando, ao mesmo tempo, o clericalismo e a instrumentalização dos sacramentos. Pelo menos, é por aí que os últimos Papas parecem querer ir.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.