Ainda só estamos no início – da Igreja clerical à Igreja sinodal

É verdade que os discursos são uma coisa, a adesão de coração ao seu conteúdo e ao seu espírito é outra e a deliberação e a implementação, contando com as resistências que sempre se encontram no plano teórico e prático, são outra ainda.

É verdade que os discursos são uma coisa, a adesão de coração ao seu conteúdo e ao seu espírito é outra e a deliberação e a implementação, contando com as resistências que sempre se encontram no plano teórico e prático, são outra ainda.

Terminou a Segunda Sessão do Sínodo da Igreja Católica sobre sinodalidade, mas não terminou o processo. Na verdade, este está mais do lado do início do que do fim. Longos séculos de prática eclesial, estruturalmente assente sobre a autoridade sacral do padre, homem e celibatário, suportada por um robusto quadro teológico, organizacional e canónico, não se mudam num acontecimento, por mais amplo e intenso que seja. Deslocar a atenção, as práticas e o pensamento da Igreja clericalizada, piramidal e burocrática para a Igreja sinodal é necessariamente um processo ousado, acidentado e lento. Os sessenta anos de receção do Concílio Vaticano II ainda não foram suficientes para operar a mudança de forma estrutural, o que se compreende. Como poderia ser de outro modo, quando se passa a assumir a dignidade e a igualdade de todos os batizados, homens ou mulheres, como ponto estrutural de base e, partindo da participação ativa que daí decorre, se recoloca a questão dos ministérios que melhor servem a missão da Igreja de dar testemunho do Evangelho numa “época de mudança de época” e, por sua vez, se revê o lugar do ministério ordenado? Como se poderia avançar sem custo para a reconfiguração de um ordenamento organizacional e normativo coerente a partir de pressupostos tão diferentes? Uma carga de desconstrução de quadros mentais herdados e de modos habituais de fazer as coisas é, por isso, incontornável, assim como são inevitáveis temores inibidores e resistências contrárias, ainda mais quando o longo processo histórico de enraizamento teórico e prático de tal forma eclesial pode levar a crer que foi sempre assim e que, portanto, não poderá ser de outro modo.

A sinodalidade assume e opera uma nova visão de Igreja. Positivamente, lança práticas, laboratórios, pensamento teológico e léxicos inéditos. Na realidade, gera um novo estilo eclesial. É certo que sem liberdade e sem coragem pode não passar de retórica inconsequente de bons propósitos e de frases feitas. Muitos temem que, no final de contas, venha a ser assim com este sínodo, mesmo depois de tão grande investimento. Evocando a famosa expressão de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, em O Leopardo, o que pudesse ser mudado não seria se não para deixar tudo como está. Há que reconhecer, porém, que a opção de colocar a sinodalidade no centro da atenção e do debate eclesial, com um método coerente e de forma tão ampla e demorada como agora, só por si, já é reveladora de liberdade e de coragem auspiciosas. Porque as imagens contam, seria suficiente revisitar a organização dos espaços na basílica de S. Pedro onde decorreram as sessões plenárias do último concílio, com a sua presidência no topo e as suas bancadas laterais, e compará-las com a sala Nervi onde decorreram as duas sessões deste sínodo, com as suas mesas redondas, praticamente não se destacando a do papa das restantes. O primeiro é um quadro composto só por homens. O segundo é já bem mais plural – há mulheres e mulheres com direito de voto. É mais do que encenação. É outra forma de ser Igreja. Poderá ser uma forma incipiente, que ainda não enforma suficiente e transversalmente a mentalidade e o conjunto das práticas eclesiais, mas, pelo menos no desejo, já é realidade.

Pesando o alcance, Christoph Theobald, perito teológico neste sínodo, perguntava-se há um ano, quando terminava a Primeira Sessão do Sínodo, se não estamos efetivamente perante um concílio, tal como o Cardeal Martini, em 1999, auspiciou que acontecesse, quando advertia, então, a carência dramática de ministros ordenados e sublinhava o dever de enfrentar questões em torno da posição da mulher na Igreja e na sociedade, da responsabilidade e da autoridade dos leigos, da disciplina do casamento e da moral sexual, das possibilidades do ecumenismo. Mesmo não tendo o nome nem invocando a autoridade, este sínodo não terá, de facto, o alcance de um novo concílio? O prognóstico de Theobald de há um ano será demasiado entusiasta. De qualquer modo, ainda é cedo para um balanço de fundo. Precisaremos de tempo e de atenção a quanto se seguirá para poder responder à questão: de atenção à constância no processo que foi aberto, à coerência das deliberações, à forma e aos conteúdos dos documentos a produzir e de atenção, também, aos dispositivos de bloqueio e às dinâmicas regressivas e restauracionistas de um passado supostamente melhor.

As manifestações de oposição ao processo sinodal lançado pelo Papa Francisco em 2021 apontam para o alcance da empresa. Não se estranha, por isso, que com os movimentos de mudança se levantem outros de forte resistência. Porque é uma questão de visão e de práticas, de teologia e de normatividade, a sinodalidade que seja mais do que pia exortação edificante não se poderá conformar à mudança que deixe tudo na mesma. Mesmo que não se avance como muitos gostariam que se avançasse em temas sensíveis como a integração de pessoas e casais homossexuais nas comunidades, a ordenação de homens casados ou o acesso das mulheres ao ministério ordenado, assumir a sinodalidade como responsabilidade da Igreja enquanto sujeito coletivo, necessariamente diferenciado e plural, como prática de tomada de palavra e de escuta de toda a comunidade eclesial e não, simplesmente, como instrumento de governo clerical de uns poucos, já constitui uma mudança significativa. Estamos apenas na etapa inicial de um processo necessariamente lento e longo de assimilação de um novo léxico sobre o modelo de Igreja e da sua relação com as particularidades culturais, de aplicação de um método de escuta e de releitura da tradição à luz das experiências das comunidades eclesiais, de passagem a um necessário aprofundamento teológico e prático e à adoção de disposições normativas e canónicas – estas, mais lentas e hesitantes – que cheguem a dar corpo coerente a este novo modelo de Igreja.

Estamos apenas na etapa inicial de um processo necessariamente lento e longo de assimilação de um novo léxico sobre o modelo de Igreja e da sua relação com as particularidades culturais, de aplicação de um método de escuta e de releitura da tradição à luz das experiências das comunidades eclesiais, de passagem a um necessário aprofundamento teológico e prático e à adoção de disposições normativas e canónicas – estas, mais lentas e hesitantes – que cheguem a dar corpo coerente a este novo modelo de Igreja.

Trata-se, na prática, de superar a forma moderna tridentina do século XVI e do seu reforço antimodernista dos séculos XIX e XX, que – é bom tê-lo presente – de forma mais ou menos consciente, continua a determinar muitos dos modos habituais de pensar e de agir na Igreja. O ponto sensível de clivagem está em identificar essa forma eclesial com a substância da fé e a força viva da tradição (tocar nela seria tocar em algo substancial e, por isso, intocável) ou, pelo contrário, em assumir que a forma sinodal entrevista pelo Vaticano II e relançada por Francisco neste sínodo é aquela que permitirá, hoje, reavivar a fé e relançar a tradição (a fidelidade à substância da fé e à missão de anunciar o Evangelho, no caso europeu, num contexto cultural secularizado e plural, pede que se operem mudanças na forma eclesial). Neste sentido, importa estar bem atentos a que a vontade e a linguagem de abertura não esbarrem na força subliminar desse cânone tridentino-antimodernista que continua a determinar as coisas e a limitar o espaço teórico e prático de implementação da nova forma sinodal. O que se afirma por palavras pode bem ser negado pelos atos. Se assim fosse, a abertura não passaria de camuflagem simpática de uma rigidez e um imobilismo estruturais, verdadeiramente determinantes.

Na parte final de um outro artigo publicado mais recentemente, na vigília da Segunda Sessão, Christoph Theobald voltou a questionar-se sobre o que será razoável esperar. Se a abertura ao inesperado faz parte de um processo honesto, havendo frutos que só se podem recolher percorrendo o caminho, já é possível entrever alguns resultados. Entre eles, identifica o «início de uma nova cultura católica». Se não é possível criar do zero um novo ethos cultural, é possível promover práticas que, com o tempo, vão fazendo mudar as mentalidades. Começar pelas práticas até que as ideias façam o seu caminho, ainda que de forma mais lenta, parece ser a opção que o papa atual tem tomado. A liberdade para elencar as questões a considerar, fruto de uma ampla auscultação, e para falar delas em redor de uma mesma mesa, sem ter de esconder diferenças de entendimento em nome de um consenso forçado e fingido mas, também, sem que as questões sejam reduzidas a um simples jogo de forças em oposição, onde ganha o mais forte, é uma prática capaz de gerar uma cultura de hospitalidade, de coragem de palavra, de confronto honesto, de comunhão plural. Ainda estamos longe de que seja um modo de proceder consolidado e enformador, há que reconhecê-lo, e não faltam contradições entre declarações e práticas. Mas o caminho está aberto.

Mais difícil será a deliberação, como se viu também pelo adiamento de pronunciamentos sobre temas sensíveis, retirados da agenda comum e do debate sinodal e confiados a dez grupos de estudo que continuarão a trabalhar por mais algum tempo. Caso paradigmático do risco real de desfasamento entre caminho e decisão, abertura de perspetivas, método de escuta e princípio de autoridade é o que diz respeito ao tema das “formas ministeriais específicas”, concretamente do diaconado feminino, confiado ao Grupo 5. Para este, contrariamente ao que aconteceu para os restantes nove grupos, não foi apresentado um elenco de peritos. O assunto foi simplesmente confiado à secção doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé. Ainda que a Secretaria-Geral tenha assegurado que o modelo de funcionamento destes dez grupos respeitava o método sinodal, a comunicação do Cardeal Ferdandéz, logo no início da Segunda Sessão, na qual antecipou que «o Dicastério considera que ainda não há espaço para uma decisão positiva do Magistério sobre o acesso das mulheres ao diaconado», não afastou o receio de que esta Congregação avance em pista própria, com os seus tempos e os seus métodos, à margem da dinâmica e do processo sinodal. Não sem desconforto, parece poder concluir-se que sobre o tema da relação da mulher com o exercício da autoridade ministerial ordenada não parece haver dinâmica sinodal à altura, mas, tão só, imposição vertical do princípio de autoridade em chave negativa – nesta matéria, o Magistério só pode não poder. Paralelamente, que a dinâmica sinodal da Igreja não poderá superar a diferença “ontológica” entre batizados do sexo masculino e do sexo feminino, com a respetiva lógica de superioridade dos primeiros e de exclusão dos segundos.

Importará ter presente que um exercício de discernimento que se entenda como ato conjunto de leitura do tempo presente à luz da Escritura e de releitura da Escritura à luz dos sinais espirituais que o tempo dá – a Igreja não tem autoridade para mudar o “depósito” da fé, mas tem o dever de o interpretar, de o reformular e de o repropor em quadros culturais novos – implica dois elementos. O primeiro: o discernimento faz-se em vista de uma escolha e de uma decisão (eleição, em linguagem inaciana) que têm sempre um custo. Assumir ir numa determinada direção implica deixar de ir noutra. O discernimento não é um processo ocioso, mas um caminho de procura com vista a encontrar e a eleger. O segundo: a escolha ou eleição é o resultado do caminho de busca efetivamente percorrido, não é uma opção tomada fora ou recebida de cima, à margem ou à revelia do caminho efetivamente percorrido. Não é, por isso, uma escolha na secretaria, mas o fruto real do caminho percorrido. Não se procura para fingir encontrar o que já se tem garantido à partida. Seria falta de coerência com o processo se se deixasse de escolher só porque o resultado é diferente daquele que se esperava obter ou porque se antevisse que a sua adoção seria difícil. A condição prévia e permanente do discernimento espiritual, enquanto percurso de busca em vista de uma eleição, é a liberdade no início, no decurso, na escolha e na implementação da escolha, liberdade que é sempre posta à prova por temores internos ou por ameaças externas. O facto de tantos temas delicados, com potencial de fratura, se terem vindo a acumular sobre a mesa da Igreja, à espera de tratamento e de respostas que sejam capazes de entrar em diálogo efetivo com a realidade existencial e cultural dos homens e das mulheres de hoje, será também consequência de ainda não terem sido reconhecidos e enfrentados com suficiente liberdade.

A teóloga espanhola Cristina Inogès Sanz, delegada ao Sínodo, que escreve neste número da Brotéria, afirmava recentemente que este é o tempo particularmente propício para «discernir a Igreja que temos e que não queremos, a Igreja que temos e que queremos e a Igreja que queremos e que ainda não temos». Esta liberdade positiva de discernimento em vista de uma eleição, a Igreja deve concedê-la a si própria no momento presente, superando “o poderoso encanto da impotência” por parte das lideranças eclesiais e assumindo que a Tradição só é justa memória do passado na medida em que for verdadeira promessa de futuro.

As disposições e as condições mínimas para este exercício parecem estar reunidas. É verdade que os discursos são uma coisa, que a adesão de coração ao seu conteúdo e ao seu espírito é outra e que a deliberação e a implementação, contando com as resistências que sempre se encontram no plano teórico e prático, são outra ainda. Mas só estamos no início de um novo início. Aqui chegados, cabe continuar a conjugar intenção reta, coerência de conteúdo e forma e paciência no percurso com desassossego, pensamento incompleto e imaginação.

 

1.Christoph Theobald, Un nouveau concilie qui ne dit pas son nom? Le Synode sur la sinodalité, voie de pacification et de créativité (Paris: Salvator, 2023).

2. “La deuxième session du Synode sur la synodalité”, Études 4319/Octobre (2024): 65-78.

3.Temas específicos foram retirados da agenda da Assembleia e entregues a dez grupos que deverão continuar o trabalho de investigação e discussão até ao verão de 2025. Veja-se o elenco dos grupos em https://www.osservatoreromano.va/it/news/2024-07/quo-154/elenco-dei-gruppi-di-studio-istituiti-dal-papa-e-dalla-segreteri.html

4. Nas palavras de Andrea Grillo, «podemos dizer que a traditio […] colhe-se na síntese sapiente e visionária entre “a certificação que a Escritura confirma” e aquilo que “a inesgotável vida da Igreja exige”»: L’accesso delle donne al ministero ordinato (Cinisello Balsamo: San Paolo, 2024), 164.

5.https://www.vidanuevadigital.com/tribuna/no-es-el-final-sinodal-cristina-inoges/

6. Título de um dos capítulos de A liberdade democrática (Lisboa: Relógio d’Água, 2024), de Daniel Innerarity. Embora o autor catalão esteja a falar especificamente dos políticos em regimes democráticos, dá que pensar a hipótese lançada, considerando também o magistério eclesial: «[…] é mais cómodo administrar a impotência do que o poder» [40].

 

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