Não será nem exagerado nem simplista entender a Igreja e os seus desafios na atualidade como espaços abertos que, individual e comunitariamente, promovem o integral crescimento espiritual das pessoas. É verdade que este lugar de Igreja apresenta novas equações, novas aberturas e novas saídas, mas toda a tradição secular foi um berço de acompanhamento espiritual. É bom recordar os padres do deserto (e as madres do deserto, menos invocadas, mas existentes) no seu exercício de busca e encontro, amparado com dinamismos de acompanhamento. Por tudo isto é importante sublinhar a urgência eclesial de estimular o acompanhamento espiritual.
A forma como este acompanhamento pode ser processado apresenta hoje características e oportunidades específicas. Desenvolvemos de seguida, ainda que de forma sintética, alguns destes aspetos.
a) É mais acompanhamento (co-caminho) e menos direção espiritual;
Este ajuste mais ou menos contemporâneo, de direção espiritual para acompanhamento espiritual, significa mais do que uma nuance. O termo direção, de facto, apresenta, pelo menos na semântica, senão mesmo na praxis, uma insinuação mais dirigista e vertical. Na sua versão mais aguda, caricatural ou não, a direção espiritual pode pisar a linha da invasão da consciência e, em muitos casos, da manipulação ou mesmo do terrorismo espiritual. De forma mais ou menos direta chegaram-me ao conhecimento experiências traumáticas religiosas vertidas em expressões do tipo ‘é vontade de Deus para ti…’
b) É também e sempre, de alguma forma, psico-espiritual;
Discute-se muito sobre a separação ou simbiose dos terrenos pisados em acompanhamento, no que diz respeito aos fatores espirituais e psicológicos associados. Tenho uma posição ela mesmo tensional sobre este assunto: por um lado, entendo que em nome da inteireza evangélica que procuramos, o acompanhamento espiritual terá sempre que invadir e ser invadido por desafios de natureza psicológica. O espiritual, bem o sabemos, entrelaça-se no psicológico (e no socio-biológico, bem entendido) de forma indissociável. Por outro lado, há casos em que a circunstância psicológica de partida não aconselha a experiência espiritual aprofundada. Inácio de Loyola previne de forma equivalente uma certa condição psicológica e física para encetar a experiência dos exercícios espirituais. Nesses casos de dúvida sobre a robustez mínima de partida, é bom colegiar a aproximação ao acompanhamento, harmonizando triangulações transparentes e eticamente autorizadas pela pessoa em ajuda, entre psicólogos, psiquiatras e acompanhadores espirituais. Tudo isto aponta para a essencialidade e a inteireza encarnada da vida cristã.
c) Pode, com vantagem, ser protagonizado por mulheres;
Sem querer entrar aqui na extensa, complexa e fascinante discussão do feminismo (ou falta dele…) na Igreja, vou entendendo que há um dramático déficit da sensibilidade e de protagonismo feminino, ao nível da visão e do apontamento do Evangelho vivido, precisamente a partir dessa condição humana de se ser mulher. Falta depois, também, na sequência, espaço amplo para a liderança e protagonismo femininos nos exercícios pastorais, eclesiais, sacramentais e espirituais. Enquanto para alguns sonhos de uma Igreja ‘com mais feminino’, estamos sujeitos a uma inércia monstruosa, no plano do acompanhamento espiritual é “desproblemático” e canónico este serviço ser realizado por mulheres. Existe, portanto, no ministério sagrado da escuta e do acompanhamento, uma ampla margem de renovação eclesial, incluindo mais protagonismo feminino. Arrisco dizer que muito sacerdotes teriam a ganhar complementaridade pessoal e pastoral com a experiência de eles mesmos terem acompanhamento espiritual no feminino.
d) Tem sentido propor-se o acompanhamento espiritual como estrutural na vida cristã, sob as recomendações pedagógicas da Igreja (se é que estas ainda são escutadas e apropriadas pelos crentes…).
Poderiam ser revistas algumas ‘obrigações’ doutrinais (interpretamos como sugestões de vida cristã católica) que andam por aí há muito tempo, tantas vezes ditas e vividas de forma excessivamente métrica ou sacramentalista. A ideia seria encorajar fortemente o acompanhamento espiritual como espaço prioritário de crescimento cristão. Este cenário é redobradamente agudo para quem vive no canteiro da Igreja onde fecunda a espiritualidade inaciana. Relembro as normas católicas extraídas do cânone: “1- Participar da Santa Missa aos domingos; 2- Confessar-se ao menos uma vez por ano; 3- Comungar ao menos pela Páscoa da Ressurreição; 4- Fazer jejum e abstinência nos dias estipulados pela Igreja: Quarta-Feira de cinzas e Sexta-Feira Santa; 5 – Ajudar a Igreja em suas necessidades”. Sem deitar fora a água e o bebé, também pelo inegociável valor dos sacramentos, há aqui lugar para outras prioridades que, com toda a certeza, como forte recomendação e aferição de vida cristã, poderiam incluir o acompanhamento espiritual.
Além dos itens a) a d) acima abertos, há uma caraterística do acompanhamento espiritual que é de enaltecer e sublinhar e que, de alguma forma, nos distingue de certas ofertas religiosas mais ou menos fechadas e fáceis, de certo fast food espiritual: o acompanhamento espiritual implica, processo, diálogo, confronto, aprofundamento, trabalho, caminho acompanhado. Vale a pena, por isso, que as instâncias religiosas e o dinamismo sinodal em curso levem muito a sério esta questão, para que se formem mais e melhores acompanhantes espirituais e se fomente esta tradição enculturada, trazida ao nosso tempo e às nossas sedes.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.