1. Como mel para a boca
Daniel Faria é um dos grandes poetas portugueses do século XX. Dois dos seus poemas revisitam Abraão e o sacrifício de Isaac.
Do Sacrifício de Isaac
Queimará o monte, o filho, a lenha
A morte, as areias, a viagem
O deserto, a túnica, as estrelas
Nunca será bastante o incêndio
Escolhi a morte para ficar contigo
– Planta filial e nómada
Feixe de lenha que Isaac carrega na pergunta
Viagem que inaugura a árvore nova, videira
Que se estende sobre todos os ramos
Escolhi-te também para depois
2. Um texto bíblico
O Génesis é o primeiro dos cinco “Livros de Moisés” e oferece ao seu leitor uma reflexão antropológica. A temática que percorre o conjunto da narrativa diz respeito
às relações fundadoras do ser humano. O historiador não pode dizer quase nada sobre a historicidade das personagens e sobre os factos relatados no Génesis. E as demais fontes antigas que conhecemos nada dizem sobre os acontecimentos descritos no livro.
Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: «Abraão!» Ele respondeu: «Aqui estou.» Deus disse: «Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar.»
(…)
Chegados ao sítio que Deus indicara, Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha. Depois, estendendo a mão, agarrou no cutelo, para degolar o filho. Mas o mensageiro do SENHOR gritou-lhe do céu: «Abraão! Abraão!» Ele respondeu: «Aqui estou.» O mensageiro disse: «Não levantes a tua mão sobre o menino e não lhe faças mal algum, porque sei agora que, na verdade, temes a Deus, visto não me teres recusado o teu único filho.» (Gn 22, 1-2.9-12)
3. O esclarecimento
O Corão, sura 37, 102-109, evoca o sacrifício de Abraão, ou melhor, de Ibrahim (Abrãao em árabe). Contrariamente ao texto bíblico, que evoca muito claramente Isaac, este não especifica qual é o filho de Abraão a que se refere – Isaac ou Ismael. Tabari (historiador e exegeta do Corão do final do século IX) inclinava-se para Isaac, mas as tradições populares acabaram por escolher Ismael, filho primogénito de Abraão e venerado como antepassado dos Árabes.
Abraão é uma figura patriarcal maior da Bíblia que o Corão recuperou nos seus textos. O Corão é assim um emaranhado de referências bíblicas que são interpretadas e conjugadas de acordo com a realidade histórica da sua época.
O Islão celebra o sacrifício de Abraão com a festa de l’Aïd al-Adha (“festa do carneiro”) ou Aïd el-Kebir (“grande festa”) que encerra a peregrinação a Meca, o décimo dia do dhû al-hi- jja (último mês lunar do calendário muçulmano).
Em Meca, e por todo o mundo, sacrifica-se um animal como lembrança do gesto de submissão de Abraão, aquando do episódio do “não sacrifício” do filho.
O animal sacrificado é depois consumido pelos membros da família e pelos amigos. Uma parte é reservada para a partilha com os mais desfavorecidos. Esta festa encerra o ciclo anual das festas do Islão.
4. Uma última palavra
Toda a humanidade se colocou esta questão: porque é que Deus pede Abraão para sacrificar o seu filho? Gostaríamos de imaginar que estas linhas de Léon Chestov poderiam ter dado pistas para a sua explicação:
“Ele não vislumbrava nem o sol, nem o céu, ele não via nada na vida, ainda que tudo estivesse diante dos seus olhos. E, quando a morte chegou, ele percebeu subitamente que não tinha visto nada (…). Tudo o que tinha conseguido ver de verdade, tinha-o visto durante a sua infância, a sua juventude, tendo-o depois esquecido, passando a empregar todas as forças em ser, não ele mesmo, mas simplesmente “igual a toda a gente”.
Da mesma forma, a revelação da morte não é uma negação da vida: é, pelo contrário, uma afirmação – mas uma afirmação totalmente diferente da habitual agitação na qual os seres humanos se deixam prender.”
Sur la balance de Job. Pérégrinations à travers les âges, 1923.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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