Às 04:14 da manhã recebo a chamada da minha cunhada. O João partiu. Eu tinha acordado minutos antes, com a voz dele nítida no meu ouvido – ‘Rita’. Já era esperado, já ele o esperava.
O dia começa. A máquina da roupa está cheia de lençóis para estender, no rádio ouço que há um acidente no IC 22, no nó da Ramada. Vou até casa da minha Mãe para dar a notícia. Sento-me numa cadeira, junto à cama. Falamos meio às escuras. Uma Mãe que perde um filho e uma irmã que perde um irmão. Há um ano tinha sido o meu Pai. Uma mulher que perde um marido e uma filha que perde um Pai.
Gosto de vocabulário e de glossários. Gosto de escrever histórias de vida. Quando o João morreu, fiquei sem palavras. Fiquei muda. E até agora, não encontrei um léxico que se lhe adeque. É inexplicável. À medida que o tempo passa, o choque passa, mas a dor instala-se num lugar. É o tempo dela.
Há tantas perguntas e ao mesmo tempo uma vontade de continuar a ver beleza em tudo. Pois o Mundo continua a ser belo, apesar de o João não estar nele. E o amor por ele continua, vivo e exultante. Até se intensifica. O que se faz com ‘isto’?
A dissonância cognitiva é a necessidade que o ser humano tem de encontrar coerência para duas oposições – as pessoas que amamos morrem. Quando ela surge, temos de a resolver, e para isso procuramos diferentes pontos de vista, pensamentos e crenças.
‘A inteligência mede-se pela capacidade de mudar’, a esta frase de Albert Einstein, diria mesmo, pela capacidade de se transformar. Pela quantidade de experiências vividas, cujas cognições resultam em dissonâncias, que nos levam a uma mudança de perspetiva, pensamento ou crença.
A história da vida pode contar-se como uma viagem pelos carris de um comboio, com várias carruagens e compartimentos, ligados entre si, cujo caminho é feito de paragem em paragem. Em cada momento, que marca o seu percurso, entram e saem, um monte de pessoas, experiências e cognições, como grupos de viajantes cheios de mochilas
A história da vida pode contar-se como uma viagem pelos carris de um comboio, com várias carruagens e compartimentos, ligados entre si, cujo caminho é feito de paragem em paragem. Em cada momento, que marca o seu percurso, entram e saem, um monte de pessoas, experiências e cognições, como grupos de viajantes cheios de mochilas. Vou tirando, daqui e dali pensamentos, um novo ponto de vista, trocam-se ideias, ouvem-se opiniões. Umas pessoas vão ficando, outras vão saindo. O comboio segue em frente, até ao seu destino.
Quando os lutos, e a morte, começam a acontecer, entra uma amalgama de dúvidas, dor, zanga, insónias, choro, enjoos, tristeza. A dissonância tenta ‘sentar e arrumar’ os passageiros e as bagagens, dar uma ordem a uma desorganização caótica.
O sol levanta-se e põe-se, há que desimpedir a linha, seguir viagem. Até que chegamos ao momento de querer puxar o travão de emergência, aquele que dizem levar-nos para a cadeia caso o façamos, e gritar: «este comboio não anda mais!» Queremos parar o Mundo, encontrar as palavras, o sentido, a lógica.
O exaspero fez-me chegar a um apeadeiro, com um enorme banco, onde saio e me sento. E é aí que Deus senta-se ao meu lado. Diz que esteve à minha espera. Também está sem palavras, perplexo, incrédulo. Também se interroga. É na pergunta que nos encontramos. E «a dúvida converte-se na energia da crença».
A frase é de Nick Cave, autor do livro Fé, Esperança e Carnificina, que a completa com a ideia da ‘utilidade’ em acreditar. A fé não se explica. Deus não se explica. Morrer um irmão não se explica. É no limite das experiências de vida, em que procuramos o travão de emergência, onde, mais do que acreditar, sentimos a presença e procuramos a Fé. Essa é a Sua dádiva.
E assim se vai transformando a viagem. Nas carruagens colocam-se mais bancos, melhora a carta do Restaurante, no Bar servem-se copos de bom vinho, e há música. Há uma leveza, que não é ingénua, como uma melodia constante que liga os compartimentos. Há um consolo, um otimismo, até.
A dor e a tristeza seguem viagem, também. Há momentos insuportáveis e nesses dias, em que me encosto aos pés daquele banco, pergunto-Lhe: o que se espera de mim? A beleza do diálogo está na minha vulnerabilidade e na humildade em saber que nada sei, que devo fazer o bem, sorrir, estar disponível, ouvir e ter o coração pronto para amar e ser amada.
É lento o caminho do coração, e mesmo na dúvida excruciante, não deixemos de acreditar num Amor que tudo salva. Só Ele nos pode salvar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.