A última sessão de Freud ou porque ninguém se esquece de Deus?

Da mesma forma, a beleza do mito, que nos enche o coração de esperança, não nos dá uma demonstração cabal da existência do ser divino. É aqui que me lembro de Pascal: no que à questão de Deus diz respeito, a razão é incapaz de decidir.

Da mesma forma, a beleza do mito, que nos enche o coração de esperança, não nos dá uma demonstração cabal da existência do ser divino. É aqui que me lembro de Pascal: no que à questão de Deus diz respeito, a razão é incapaz de decidir.

A arte de bem conversar permite acolher o dom de encontrar uma pessoa diferente de mim e de a trazer para a minha vida, tornando-me eu também parte da sua. Talvez seja por isso que eu gosto tanto de conversar com alguém que pensa de forma diferente de mim: sentir-me ouvido e ouvir as palavras e as expressões do rosto de quem tem outra opção de vida. Não se trata apenas de conversar. É o dom do encontro que ali se realiza. Nessa troca de palavras, sou levado a descobrir não só o outro com quem converso, mas também o íntimo do meu próprio ser, nas feridas da minha história, nas crenças que movem a minha vida e nos sonhos que sempre ficam por realizar. Nessa troca de olhares com palavras, as ideias e os argumentos entrelaçam-se com os afetos que também moldam as nossas opções de vida. Dialogar assim, com quem pensa de forma diferente e sabe ouvir, é uma arte difícil, pois, para crescer na intimidade, requer-se a coragem de expor a pessoa que somos, sem máscaras.

Este filme traz-nos um pouco disto: pessoas que expõem a fragilidade das suas vidas. Muito embora cada um dos interlocutores deste enredo nunca abandonem os a priori’s das suas convicções, estão com uma boa disposição para ouvir o outro, diferente de si. Tudo se passa no gabinete de Freud em Londres. É ali que os dois homens se encontram, entre a secretaria, os livros, e o whisky, na intimidade das palavras e dos silêncios.

Dirigido por Matthew Brown, este filme inspira-se na peça anónima de Mark St. Germain (2009) que, por sua vez, explora a hipótese exposta por Armand M. Nicholi em The Question of God (2003): e se Freud se tivesse encontrado com Lewis? Com efeito, conta-se que Freud teria tido, já às portas da morte, uma última sessão com um reputado professor de Oxford, a saber, C. S. Lewis. O encontro ocorre na fase final da vida do psicanalista, já há muito exilado na capital britânica. Estamos em setembro de 1939. O exército de Hitler acabou de invadir implacavelmente a Polónia, ao que se sucedem declarações de guerra entre os aliados e as nações do então chamado Eixo. As sirenes soam com frequência.

Aquele ambiente de guerra é propício para paranoias e traumas. E é neste cenário que o pai da psicanálise encontra o apologeta cristão. O enredo começa por nos fazer sentir os contrastes. Lewis está no auge da sua juventude: jovem e belo, o académico visita um Freud em fim de vida. Com um cancro avançado, Freud alivia as suas dores com doses de morfina misturada num bom Scotch. Mesmo assim, é ele quem mostra a vitalidade e a paixão dos argumentos, para além de ter a calma suficiente para tranquilizar o jovem Lewis, à beira de um ataque de pânico, com o som das sirenes que lhe recordam as trincheiras da Primeira Grande Guerra.

Acompanhado dos seus charutos, Freud mantém-se inabalável no materialismo das suas convicções ateias. Volta e meia, tosse sangue. Mas sem mostrar qualquer receio com a morte que se avizinha. Já preparou, aliás, o suicídio assistido para não ter de sofrer mais durante a próxima etapa da doença.

É assim, velho e frágil, que ele continua a mostrar o seu sarcasmo para com as ideias teístas de Lewis. É como se Freud escolhesse o lado da razão, da ciência, oposto ao mito, qual crença religiosa de Lewis. Creio que se revela aqui o perigo destas tramas narrativas: facilmente reduzimos os protagonistas a meras caricaturas das suas próprias ideologias.

Creio que se revela aqui o perigo destas tramas narrativas: facilmente reduzimos os protagonistas a meras caricaturas das suas próprias ideologias.

No entanto, o enredo também se faz de tons cinzentos. Enquanto a fé do apologeta o estimula a procurar argumentos racionais que tornem o sofrimento compreensível apesar da bondade de Deus, o ateísmo de Freud não o impede de colecionar imagens de deuses. Eis o paradoxo: o ateísmo de Freud confunde-se com um fascínio desmedido pelo homo religiosus. Mas apesar desse fascínio, o psicanalista reduz o fenómeno religioso ao medo que o ser humano experimenta face à sua própria mortalidade: acreditamos na vida eterna e assentimos num credo religioso, enquanto nos for difícil aceitar a nossa própria morte.

Contudo, mesmo que Freud demonstrasse, com toda a certeza, que “somos todos uns cobardes”, como ele diz, isso não chega para convencer Lewis. Seria ilegítimo, do ponto de vista lógico e metafísico, deduzir que Deus não existe a partir desse ‘facto’, ou pseudo-facto, humano. Da mesma forma, a beleza do mito, que nos enche o coração de esperança, não nos dá uma demonstração cabal da existência do ser divino. É aqui que me lembro de Pascal: no que à questão de Deus diz respeito, a razão é incapaz de decidir.

O cinzento do enredo manifesta-se ainda na forma como Freud eleva a sua psicanálise, não propriamente a uma ciência, no sentido rigoroso do termo, mas mais propriamente a uma espécie de religião absoluta e totalitária, que tudo explica. Isto, ao mesmo tempo que o apologeta dogmático Lewis assume “não saber” tantas coisas e dizer que, como crente, apenas “tenta,” ou vai tentanto como pode a fragilidade da sua condição humana, tão humana. É por isso que Freud se ri da resposta de Lewis: “é um mistério”. Ri-se não tanto porque esta resposta contradiga a ciência, mas porque a sua psicanálise não deixa espaço para o mistério. Para ele, tudo se explica com a libido, o desejo, o subconsciente, que a sua ciência descreve – e nada há mais para além da finitude desta vida.

É neste momento que o enredo se desenvolve de maneira interessante. Até então, o psicanalista Freud questionava Lewis, por forma a que os traumas do cristão viessem à luz: a morte da mãe durante a sua infância, o pai afetivamente distante e a partida da sua Belfast no natal para um colégio interno em Inglaterra. No entanto, agora, é Lewis quem se senta à secretária de Freud, enquanto este se deita no divã dos seus pacientes. Embora seja naquele divã que encontre algum alívio para as dores que sente na boca, é aqui que o seu passado se revela: a relação difícil com o pai judeu, a proteção da ama católica e, sobretudo, a ambígua relação com sua filha Anna. Com efeito, a dependência afetiva, que parece ser patológica, de Anna pelo pai explica, segundo a própria ciência de Freud, o facto de ela nunca ter tido homens como amigos íntimos. Por isso, a questão torna-se inevitável: as críticas que Freud dirige contra a religião não se aplicam também à génese das suas teorias? O enredo não responde, nem toma partido por nenhuma das partes. Apenas expõe a fragilidade dos seus protagonistas.

Nós não somos apenas seres mortais, nem apenas animais racionais: somos todos pessoas com feridas, independentemente das nossas convicções e das escolhas que fazemos. As máscaras de gás que, volta e meia, os protagonistas desta estória têm de por, para se protegerem dos ataques iminentes dos alemães, espelham as máscaras que por vezes usamos para não contar o que vai cá dentro.

Nós não somos apenas seres mortais, nem apenas animais racionais: somos todos pessoas com feridas, independentemente das nossas convicções e das escolhas que fazemos. As máscaras de gás que, volta e meia, os protagonistas desta estória têm de por, para se protegerem dos ataques iminentes dos alemães, espelham as máscaras que por vezes usamos para não contar o que vai cá dentro. Como diz Freud: “o que as pessoas nos contam é muito menos interessante do que o que elas preferem não contar.” Com efeito, é no diálogo franco, no qual colocámos toda a nossa vida, que nos revelamos tanto ao outro como a nós próprios.

Creio que o enredo revela, sobretudo, dois modos de vida, duas atitudes distintas, personificadas em Freud e Lewis. Não é apenas uma questão de teoria, de argumentos, de pensamento ou de compreensão das coisas. Trata-se, acima de tudo, de uma escolha sobre a forma de habitar este mundo contingente e finito. Foi Pascal quem acertou: trata-se de uma aposta não apenas em Deus, mas sobretudo na vida.

Neste Freud em fim de vida, prestes a suicidar-se para vencer de vez as suas dores, vejo um horizonte pessimista, desprovido de esperança: alguém que acredita ter decifrado os enigmas do ser humano e das suas paixões, e que, com uma certeza quase arrogante, parece saber que nada mais existe para além desta vida. Por seu lado, a vida permanece um mistério inesgotável para Lewis. Em Lewis, encontro de facto um espírito que ama apaixonadamente a vida, como uma criança que se perde em contos de fadas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.