Nunca como agora, desde os primeiros ataques, em outubro de 2017, a três postos de polícia na vila de Mocímboa da Praia, se ouviu falar tanto de Cabo Delgado, sobretudo nos jornais televisivos portugueses e do mundo ocidental, nem mesmo aquando da intensificação dos ataques no ano passado, nomeadamente, da ocupação pelos jihadistas do porto da mesma vila. As razões são óbvias: o facto de haver vítimas mortais estrangeiras e de os ataques terem ocorrido apenas a 10 km do megaprojeto de exploração de gás liderado pela Total, que representa o maior investimento privado em África.
Todos sabemos que as causas essenciais dos problemas que despoletaram toda esta grave crise sempre existiram, aliás, são as mesmas que podemos observar em muitas outras regiões do continente africano, só que conjugadas com a esperança falhada de uma melhoria significativa das condições de vida, proporcionada pelas descobertas de grandes riquezas naturais, tais como o gás, o petróleo, os rubis, o ouro e o grafite, e com uma radicalização islâmica crescente desde 2007, rebentaram nestas atrocidades sucessivas que, até agora, o governo moçambicano não conseguiu travar, nem mesmo recorrendo a empresas privadas de mercenários.
Referimo-nos, principalmente, aos grandes défices de educação e de bem-estar social da população. De acordo com dados do INE de Moçambique de 2015, Cabo Delgado é a província com a taxa mais elevada de analfabetismo, na ordem dos 60%. Há muitas crianças e jovens que nunca foram à escola e a maioria dos que vão apenas frequenta o Ensino Primário do primeiro grau, que compreende os cinco primeiros anos de ensino. Há claramente uma falta de interesse pela escola que tem de ser combatida urgentemente pelo Estado moçambicano, com a ajuda de parceiros internacionais. O casamento prematuro e a maternidade precoce, que se interligam com o absentismo escolar, são também muito preocupantes. No setor económico, o Estado moçambicano não tem criado políticas públicas de crescimento inclusivo que beneficie as populações mais pobres, mas esta é também uma questão que só pode começar a ser solucionada a partir da educação. Adiar a educação é adiar o desenvolvimento de um país, é continuar a viver em situação de pobreza absoluta.
Deparamo-nos, então, com jovens sem formação, sem futuro, alguns dos quais, juntamente com as suas famílias, vítimas de usurpação de terras devido à grandeza infraestrutural dos megaprojetos, sem direito a nada do chão que os viu nascer e crescer, que facilmente acabam por seguir caminhos desviantes como o álcool, as drogas, a criminalidade e, também, por ceder à radicalização introduzida por líderes estrangeiros que dizem trazer o verdadeiro islão, que inclui o propósito claro de dominar toda aquela região.
Ei-los em combate por uma bandeira que não é a deles, cada vez mais armados, espalhando o terror nas aldeias e nas vilas, matando indiscriminadamente, raptando mulheres e crianças, até quando?
Em pouco tempo, um terço da população de Cabo Delgado já se encontra deslocada à procura de um lugar seguro. Muitos acantonam-se em Pemba, em casa de familiares, outros no campo de deslocados de Metuge; outros ainda procuram proteção em Mueda, Nangade, Montepuez ou em cidades a sul, como Nampula. Muitos trazem, apenas, a roupa do corpo e carregam feridas de dor insuportável na alma.
Perante tudo isto, a Igreja tem assumido um papel fundamental, em primeiro lugar, na amplificação do grito das vítimas dos ataques. O antigo bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa, inteiramente comprometido com o Evangelho e com os pobres, foi a voz dos que não têm voz. Mas, apesar da sua saída, a Igreja de Pemba continua a ser voz audível nos vários órgãos de comunicação internacional, nomeadamente, através do responsável pela comunicação da diocese, o padre Kiwiri Fonseca, e do próprio Administrador Apostólico, D. António Juliasse Sandramo que apelou, de forma explicita na Missa de Ramos, ao fim da violência, à prática da justiça e à assunção de responsabilidades por parte dos governantes que não podem “lavar as mãos” como Pilatos, porque isso significa condenar pessoas inocentes. “Se um líder lava as mãos, ele condena a todo o povo que governa”.
Em segundo lugar, através da Caritas diocesana, a Igreja de Pemba tem sido um verdadeiro “hospital de campanha”, assistindo dezenas de milhares de pessoas com alimentos, abrigos, vestuário e apoio psicossocial. A visibilidade internacional deste conflito, dada por D. Luiz e, sobretudo, pelo Papa Francisco, abriu a porta a um reforço financeiro por parte de parceiros e organizações internacionais, sem o qual a Caritas não poderia prestar tanta ajuda. A campanha “Juntos por Cabo Delgado”, lançada em julho de 2020 em Pemba, é exemplo desta solidariedade internacional, tendo sido estendida a Portugal, pela mão do Centro Missionário da Arquidiocese de Braga em parceria com diversas instituições e organizações – Cáritas Portuguesa, Fashion Education One Work, Infância Missionária de Balasar, LIAM, Leigos Boa Nova, Associação Regina Mundi, Missionários Combonianos, Missionários do Espírito Santo, Missão (A)mares, Mosaico, Mundo Posible, O melhor de nós, Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus – Dehonianos, Rosto Solidário e Sociedade Missionária da Boa Nova. Esta campanha ainda se encontra ativa. Por isso, pode dar a sua contribuição através da conta da Arquidiocese de Braga para o efeito: PT50 0010 0000 0276 7480 0020 8.
Nota: E entretanto, na sequência da carta aberta subscrita por distintas organizações e que a Província Portuguesa da Companhia de Jesus também subscreveu, foi lançada uma campanha de apelo à ajuda humanitária que também é apoiada pelos Jesuítas em Portugal.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.