A responsabilidade do Estado e a liberdade dos cidadãos que enfrentam uma doença grave e incurável

No país atual, não é aceitável que a assembleia da república insista em aprovar uma lei que permita ao doente morrer antecipadamente por sofrimento, quando esse sofrimento pode ser motivado por falhas no próprio sistema de saúde.

No país atual, não é aceitável que a assembleia da república insista em aprovar uma lei que permita ao doente morrer antecipadamente por sofrimento, quando esse sofrimento pode ser motivado por falhas no próprio sistema de saúde.

O texto recentemente aprovado na Assembleia da República tem como objetivo que no nosso país passe a ser possível ao doente pedir a antecipação da sua morte, no caso de se encontrar num “sofrimento de grande intensidade” decorrente de “situação de doença grave e incurável”, tendo como base o exercício da sua autodeterminação.

Comecemos por falar de como é, ou pode ser abordado, tratado e prevenido o sofrimento, ao longo dos processos de doença (porque o sofrimento não surge apenas na fase final da vida). Existe uma área dos cuidados de saúde que se especializou em prevenir e tratar sofrimento decorrente de doenças graves. Essa especialidade chama-se Cuidados Paliativos. Uma especialidade clínica que opera de forma integrada e em equipa multidisciplinar de profissionais de saúde. Portugal, infelizmente, não investiu
adequadamente nesta área de cuidados de saúde. O seu desenvolvimento continua a ser muito insuficiente. Com lacunas enormes no acesso por parte dos cidadãos. (70% dos adultos e 90% das crianças sem acesso a Cuidados Paliativos). Temos ainda poucas equipas e unidades no nosso país e temos equipas exíguas e dotadas de poucos profissionais a quem não é, muitas vezes, viabilizada a sua especialização, nem o tempo adequado para desenvolverem a sua atividade assistencial.

Enquanto estas (falhas de acesso ao cuidado de saúde essenciais) existirem, manteremos um sistema injusto e que não permite o usufruto do pleno direito à saúde consagrado na lei portuguesa. A falha neste acompanhamento é tão grave como seria grave uma falha no acesso a tratamento oncológico urgente, a uma cirurgia urgente, a um atendimento obstétrico urgente.

Existe uma resposta clínica rigorosa, científica face ao sofrimento humano decorrente de uma doença e a mesma deve estar garantida a cada cidadão que tem a sua vida marcada por doença grave. Não admitimos falhas de acesso a cuidados de saúde essenciais como são os cuidados paliativos. Enquanto estas existirem, manteremos um sistema injusto e que não permite o usufruto do pleno direito à saúde consagrado na lei portuguesa. A falha neste acompanhamento é tão grave como seria grave uma falha no acesso a tratamento oncológico urgente, a uma cirurgia urgente, a um atendimento obstétrico urgente.

A necessidade de serviços de saúde e respostas sociais centrados na pessoa com doença grave e em fase avançada é identificada internacionalmente e evidenciada em diversos documentos emanados por organizações como a Organização Mundial da Saúde ou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Também é unanime entre várias entidades no nosso país, como ficou claro no ciclo de debates promovido pela APCP, ocorrido em 14 de maio de 2022, que juntou mais de 20 entidades (sociedades científicas, profissionais, sociais) refletindo sobre os cuidados garantidos a pessoas com doença avançada (disponível no Youtube da APCP). O processo de tomada de decisão que garanta cuidados adequados pode ser um desafio para os profissionais de saúde.

A responsabilidade do Estado em garantir o acesso a cuidados de saúde de qualidade, adequados e equitativos a todos os cidadãos está em causa. O que põe em causa a liberdade que tanto ambicionamos para podermos decidir sobre a nossa vida quando marcada por uma doença grave que provoca sofrimento.

Em muitas discussões sobre o tema da eutanásia, escutam-se argumentos a favor da sua legislação que decorrem da experiência ou conhecimento sobre situações de obstinação terapêutica (que configura má pratica clínica nos termos da lei portuguesa). Ou seja, situações de confronto com sofrimento agravado, prolongado ou provocado por intervenções que não trazendo benefício ao doente, são implementadas por se centrarem na doença ou no exame complementar de diagnóstico, e não na pessoa doente.
A autonomia do doente exerce-se quando a sua participação é efetiva nas decisões sobre a sua vida, tratamentos, intervenções que deseja e não deseja ao longo de todo o processo. Esta é uma das áreas de especial intervenção de uma equipa especializada em Cuidados Paliativos, o que se precisa enfatizado e tido em conta nesta reflexão. Maior participação do doente requer mais e melhor informação ao longo do processo de doença e não apenas sobre o momento ou a forma de morte.

A responsabilidade do Estado em garantir o acesso a cuidados de saúde de qualidade, adequados e equitativos a todos os cidadãos está em causa. O que põe em causa a liberdade que tanto ambicionamos para podermos decidir sobre a nossa vida quando marcada por uma doença grave que provoca sofrimento. No país atual, não é aceitável que a assembleia da república insista em aprovar uma lei que permita ao doente morrer antecipadamente por sofrimento, quando esse sofrimento pode ser motivado por falhas no próprio sistema de saúde.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.