No passado dia 19 março, solenidade de S. José e nono aniversário da inauguração do seu pontificado, foi publicada pelo Papa Francisco a muito aguardada reforma da Cúria Romana, com a promulgação da Constituição apostólica Praedicate Evangelium, em português: “Pregai o Evangelho” (o texto, que ainda poderá sofrer correções, só foi disponibilizado em italiano).
O desejo de reorganizar o governo central da Igreja já vinha das reuniões de cardeais que antecederam o conclave, e estava implicitamente contido no anseio de uma «conversão do papado», na lógica da «conversão pastoral missionária» a que Francisco convocou toda a Igreja na sua exortação apostólica Evangelii gaudium, o documento programático do seu pontificado. Através das reuniões periódicas do “Conselho de cardeais” criado para o ajudar nesta empreitada, foi elaborado o documento que agora põe fim a um processo de lento amadurecimento, mas já iniciado, com diversas reformas parciais que foram sendo feitas ao longo dos últimos anos (em particular através da criação de novos organismos e redistribuição de competências, especialmente em matéria económica).
Uma nova arquitetura ao serviço da missão
Como o nome – tomado do envio missionário de Jesus no final do Evangelho de S. Marcos (Mc 16,15) – indica, a ideia orientadora de todo o documento é a de que o governo central da Igreja só se compreende como instrumento ao serviço da evangelização. A Cúria Romana não deve ser uma estrutura de poder, mas um meio para favorecer o anúncio da alegria do Evangelho a todos os povos e a cada pessoa, principal missão da Igreja e de cada um dos seus membros.
A Cúria Romana não deve ser uma estrutura de poder, mas um meio para favorecer o anúncio da alegria do Evangelho a todos os povos e a cada pessoa, principal missão da Igreja e de cada um dos seus membros.
Especialmente significativo do espírito missionário que anima a reforma é a primazia dada ao novo Dicastério para a evangelização, que reúne a anterior Congregação para a evangelização dos povos (com competência para as chamadas “terras de missão”) e o Pontifício conselho para a nova evangelização (mais vocacionado para os países tradicionalmente cristãos). Além do seu lugar cimeiro na lista dos organismos vaticanos, este Dicastério, ao contrário dos demais, não terá à sua frente um Prefeito, mas será presidido diretamente pelo Papa (assim como acontecia com o antigo Santo-Ofício antes da reforma de Paulo VI), sinal claro da centralidade da missão evangelizadora na própria autocompreensão do ministério do sucessor de Pedro.
Por outro lado, a conversão missionária passa também por um esforço de modernização e simplificação das estruturas, com a integração de diversos organismos até aqui distintos, ou mesmo autónomos, como a Pontifícia comissão para a proteção dos menores, agora formalmente integrada no organigrama vaticano, no seio do Dicastério para a doutrina da fé. Expressão também desta modernização e agilização é a adoção generalizada da nova designação “Dicastério”, que se aplica a todas as atuais Congregações e Pontifícios conselhos, superando uma hierarquia implícita anterior (tradicionalmente as Congregações tinham à sua frente um prefeito, cardeal, enquanto os conselhos tinham um presidente, normalmente bispo).
A reforma por detrás das estruturas
Apesar do seu potencial transformador, não são as novas estruturas que constituem o coração da presente reforma, mas sim o espírito que a anima e que convoca direta ou indiretamente toda a Igreja. A “alma” da reforma agora concretizada pelo Papa Francisco transparece, antes de mais, nos princípios e critérios que devem dirigir toda a organização e atuação da Cúria romana, aos quais o documento reserva toda a segunda parte. Destes princípios ressaltam a preocupação pela “ministerialidade” ou espírito de serviço que deve caracterizar aqueles que trabalham e colaboram, a qualquer nível, nas instituições vaticanas. Um serviço que implica competência e profissionalismo, sem espaço para carreirismos e compadrios. Ao lado das competências técnicas, exige-se, no entanto, também aos “funcionários” do Vaticano que sejam homens e mulheres de virtude, capazes de dar testemunho da sua fé na vivência da sua vocação particular. Em particular, os sacerdotes e consagrados ao serviço da Cúria romana são convidados a desenvolver alguma forma de atividade pastoral direta.
Ao lado das competências técnicas, exige-se, no entanto, também aos “funcionários” do Vaticano que sejam homens e mulheres de virtude, capazes de dar testemunho da sua fé na vivência da sua vocação particular.
Neste quadro se integra também a norma segundo a qual todas as nomeações (salvaguardados os direitos laborais dos colaboradores leigos) são feitas por cinco anos, sem garantia de recondução automática. Inovadora, em particular, é a indicação para que os sacerdotes e religiosos que assumem uma missão nas estruturas vaticanas, a qualquer nível, regressem às suas Igrejas locais e institutos ao fim dos cinco anos, evitando uma eternização em Roma, fonte de burocratização e de potencial alheamento da realidade viva da Igreja.
Outra linha inspiradora que atravessa toda a presente reforma é a da sinodalidade, ideia que tem estado no coração da atuação e preocupação do Papa desde o início do seu pontificado (especialmente a partir do famoso discurso na comemoração dos 50 anos do Sínodo dos bispos, em 2015). O “caminhar juntos” que deve caracterizar toda a vida eclesial manifesta-se, ao nível do governo central da Igreja, de uma forma particular na relação entre o Papa e os bispos – Igreja universal e local – no sentido de uma sempre maior subsidiariedade que potencie a atuação de cada um dos níveis. É especialmente significativo o número de referências que o documento faz às conferências episcopais, não como um nível intermédio entre o bispo de Roma e os bispos locais, mas sim como forma de comunhão afetiva e efetiva entre todos os bispos. Ao sublinhar estes organismos, o documento sublinha também o papel dinamizador da Cúria romana ao serviço das Igrejas locais (também nacionais, reginais e continentais), e não apenas como instrumento de centralização.
Inovadora, em particular, é a indicação para que os sacerdotes e religiosos que assumem uma missão nas estruturas vaticanas, a qualquer nível, regressem às suas Igrejas locais e institutos ao fim dos cinco anos, evitando uma eternização em Roma, fonte de burocratização e de potencial alheamento da realidade viva da Igreja.
Especial expressão da sinodalidade é o papel que a todos os batizados é reconhecido pela Praedicate evangelium, sem estabelecer distinções, em particular quanto ao exercício do ministério ordenado. Na mente do Papa Francisco, o sonho da sinodalidade está intimamente ligado ao combate ao clericalismo, mal transversal na Igreja, e que «se insinua diariamente» nas instituições vaticanas, como referiu no seu último discurso natalício à Cúria romana. Assim, o serviço da Cúria romana, para ser rosto de Cristo, deve refletir a variedade dos rostos dos seus discípulos que com os respetivos carismas se colocam ao serviço da Igreja. Em particular, e em direto contraste com quanto afirmava a anterior Constituição apostólica Pastor bonus, o número 5 da segunda parte de Praedicate Evangelium afirma explicitamente que ao exercer um «poder vigário» em nome do Papa (conferido por este), qualquer fiel pode presidir a um Dicastério ou organismo da Cúria romana.
Renovar as estruturas é apenas o início
A reforma da Cúria romana que agora se conclui representa, sem dúvida, um marco importantíssimo no pontificado do Papa Francisco, e também na vida da Igreja universal, mas pode, ainda assim permanecer (em grande medida) uma oportunidade desperdiçada, se ficar confinada ao nível das estruturas. Como tem repetido o Papa, não há renovação possível dos organismos sem uma verdadeira conversão do coração de cada um. Esta conversão não se limita, naturalmente, a quem trabalha na Cúria romana, mas convoca todos os membros da Igreja! Os princípios e critérios consagrados agora na Praedicate Evangelium podem, e devem, por isso servir de inspiração para todos os níveis da vida eclesial, grupos, paróquias, dioceses, movimentos, etc., na convicção que a reforma não é (tanto) um ato, mas um processo e um dinamismo contínuo que implica e responsabiliza cada um.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.