Há uns anos, antes ainda de partir em missão com os Leigos para o Desenvolvimento, fiz um voluntariado fora de Portugal, durante as férias do verão, com um grupo de quase 40 estudantes universitários. Tínhamos levado connosco alguns bens que nos foram doados para distribuir entre as pessoas da comunidade com quem íamos passar aqueles dois meses. Entre esses bens havia uma série de mantas e, a dada altura, foi dito às pessoas dessa comunidade que cada uma poderia levar uma manta. Uma mulher aproximou-se e começou a escolher. A primeira reação da responsável pela entrega das mantas foi de espanto pelo facto de a mulher estar a escolher. Como se não tivesse direito a isso. Mas depois pensou para consigo mesma: Por que razão não teria esta mulher o direito de escolher? Se eu própria posso escolher o que quiser, por que razão acho que ela não tem o mesmo direito que eu? Só por ser pobre? E o que é isso de ser pobre?
Cada um de nós terá contacto com a realidade da pobreza de formas diversas, em maior ou menor grau, em diferentes contextos e geografias. Pode ser apenas o contacto das informações que nos chegam todos os dias pela comunicação social, pode ser o contacto de quem trabalha diariamente com realidades de pobreza, pode ser o contacto de quem faz voluntariado nalguma instituição, ou pode inclusive ser o contacto de quem já viveu ou vive a pobreza na primeira pessoa. Há quem ache que os pobres são pobres porque querem, e que só não saem dessa situação porque não têm força de vontade suficiente. Olharmos para as estatísticas pode ajudar-nos a perceber melhor a dimensão do problema, a darmo-nos conta das suas facetas, complexidades e impactos e, quem sabe, a ser tocados por essa realidade. Neste sentido, entre os vários estudos e relatórios sobre a pobreza e os pobres que vão sendo publicados, vale a pena ler o estudo «A pobreza em Portugal: trajetos e quotidianos» ou olhar para a página das Nações Unidas para uma perspetiva da pobreza no mundo».
Há quem ache que os pobres são pobres porque querem, e que só não saem dessa situação porque não têm força de vontade suficiente.
Contudo, as estatísticas também têm limitações, pois não têm ‘cara de gente’, podendo criar em nós uma espécie de barreira invisível que nos impede de ter empatia com as pessoas concretas que se encontram em situação de pobreza. Os números são compostos por algarismos e sinais matemáticos, como se diz no estudo aqui referido, mas na realidade condensam as vidas de muitos milhões de pessoas. E entre esses muitos milhões de pessoas poderia estar qualquer um de nós: bastava termos nascido numa família diferente, num país diferente, noutro ponto do globo, num contexto ou num conjunto de circunstâncias diferentes. Será que nos damos conta disto?
Os pobres não são ‘os pobres’ em grupo nem uma entidade abstrata. São, sim, pessoas concretas, com percursos de vida concretos, com vulnerabilidades mas também desejos, receios, vontades, são pessoas capazes de ter força na fragilidade, capazes de lutar nuns momentos e de deixar-se vencer pela falta de esperança noutros momentos, tal como qualquer pessoa. Daí a importância de olharmos para cada pessoa como pessoa, com a mesma dignidade e respeito com que gostamos que os outros olhem para nós. Quando conseguimos mudar a nossa forma de olhar, podemos certamente contribuir para que pessoas concretas em comunidades muito concretas possam apropriar-se dos seus destinos e pouco a pouco irem elas mesmas construindo o seu presente e o seu futuro.
Quando conseguimos mudar a nossa forma de olhar, podemos certamente contribuir para que pessoas concretas em comunidades muito concretas possam apropriar-se dos seus destinos e pouco a pouco irem elas mesmas construindo o seu presente e o seu futuro.
Nos Leigos para o Desenvolvimento, acreditamos que o combate à pobreza se faz também e sobretudo a longo prazo, num caminho lado a lado com as pessoas e as comunidades, trabalhando a progressiva apropriação dos seus próprios destinos. E se por vezes o desejo da solução rápida e imediata dificulta o ver para além da curva da estrada, quando olhamos para trás e vemos o caminho percorrido e tudo o que foi alcançado, percebemos que valeu a pena andar devagar, fortalecer interiormente a autoestima das pessoas para que se sintam capazes de escolher e decidir por si próprias, trabalhar com elas e não apenas para elas, quebrar o ciclo das soluções vindas de fora que tantas vezes criam novos problemas, procurar em conjunto respostas locais que possam prevalecer para além da nossa presença (e que se calhar até já existiam mas não eram valorizadas).
A vida dá muitas voltas e nenhum de nós pode dizer que um dia não estará numa situação em que se veja pobre, sem esperança e sem perspetiva de futuro. Por isso, vale a pena empenharmos as nossas vidas e as nossas energias para que pessoas concretas possam voltar a ter confiança suficiente em si mesmas e dar os passos necessários para o seu desenvolvimento. Até porque, nesse processo, percebemos habitualmente que há pessoas extraordinárias que às vezes de pobres só têm o nome que os outros lhes atribuem e que são elas que nos ajudam a crescer.
Nota: Fernando Diogo (coord.) (2021), «A pobreza em Portugal: trajetos e quotidianos», Fundação Francisco Manuel dos Santos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.