A primeira letra da história do mundo

Um pequeno curso de hebraico na companhia de Miguel Ângelo, Victor Hugo e… Bakermat.

Um pequeno curso de hebraico na companhia de Miguel Ângelo, Victor Hugo e… Bakermat.

1. Como mel para a boca

Na célebre música Uitzicht (tentem lá pronunciar a palavra correctamente!) do DJ holandês Bakermat, ouvimos uma voz (2’45”) que cita os 3 primeiros versículos do primeiro capítulo do Génesis (na chamada King James Version):

«God created the heaven and the earth. And the earth was without form, and void; and darkness was upon the face of the deep. And the Spirit of God moved upon the face of the waters. And God said, Let there be light.»

 

 


2. Um texto bíblico

No princípio, quando Deus criou os céus e a terra.

A terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas.

Deus disse:

– Faça-se a luz.

E a luz foi feita.

Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.

Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.

Génesis 1,1-5


3. O esclarecimento

| UM PEQUENO CURSO DE HEBRAICO |

A primeiríssima letra da primeira palavra da Bíblia inspirou uma panóplia de interpretações entre os rabinos:

  • Na tradução portuguesa, a primeira palavra do texto é «No» – sem muito interesse, portanto… Mas, na verdade, a expressão «No princípio» traduz o hebraico Bereshit (literalmente: Be «no» + reshit «princípio, começo»).
  • A primeira letra de Bereshit é, pois, a letra Bet (pronuncia-se como “bet”, “aposta” em inglês!) que é a segunda letra do alfabeto hebraico – a primeira é o Aleph.

Os rabinos colocaram-se, então, a seguinte questão: por que é que a primeira letra da primeira palavra do primeiro livro da Escritura não é a primeira letra do alfabeto?

  • Para eles, se a Bíblia começa com a segunda letra, isto não é seguramente por mero acaso: parece sugerir que aquilo que precede a criação do mundo (deve) permanece(r) um mistério.

 

| E UM WORKSHOP DE CALIGRAFIA |

Vejamos, agora, como se escreve a letra Bet. A língua hebraica escreve-se e lê-se da direita para a esquerda:

A letra Bet é “fechada” em três dos seus lados: à direita, em cima e em baixo. (No início, era um pictograma representando o plano de uma casa, com três paredes e a entrada à esquerda). O que nos diz três coisas sobre a criação do mundo:

  • Porque a letra é “fechada” à direita, o relato não nos quererá dizer o que se passa antes da criação nem fora dela;
  • Porque a letra é “fechada” em cima, o relato não nos falará do que acontece depois da morte, no céu;
  • Porque a letra é “fechada” em baixo, o relato não se interessará pelo que ocorre nas trevas.

 

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Miguel Ângelo (1475-1564), A separação da terra e das águas (1508-1512), Capela Sistina, Vaticano.

A letra Bet “constrói” três paredes para forçar o leitor a entrar pela única abertura disponível, à esquerda: trata-se de entrar na criação do mundo na companhia de Deus que inscreve a Sua bondade no caos que Ele mesmo ordena.

Na verdade, o relato bíblico da criação não se quer pronunciar sobre três questões que atravessam a história do pensamento humano: O que é que se passava antes da criação do mundo? Como se pode descrever o que está para lá deste mundo? Como se pode explicar a presença do mal?

 

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Rafael (1483-1520), A criação do mundo (1516), Cúpula da Igreja de Santa Maria del Popolo, Roma, Itália.

E então?

A Bíblia contém numerosos segredos e o estudo das línguas nas quais foi escrita permite descobrir os seus pequenos tesouros e grandes mistérios. É uma Palavra viva que não cessa de interpelar a inteligência do leitor, convidando-o a aprofundar sempre mais os seus conhecimentos.

 


4. E ainda uma palavra final…

Demos a palavra a Victor Hugo para concluir em beleza — sem comentários:

«Ao contemplarmos a criação, uma espécie de música misteriosa aparece sob a sua esplêndida geometria; a natureza é uma sinfonia; tudo nela é cadência e medida; poderíamos quase dizer que Deus criou o mundo em verso.»

Victor Hugo, Faits et croyances (1840)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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