Provavelmente, nunca foi tão difícil dizer ‘aleluia’. O tempo que vivemos pode parecer para muitos uma terra estranha. E “como havemos de cantar a canção do Senhor em terra estranha?” Desde a pena do salmista até às guitarras dançantes dos Melodians ou às vozes reverberantes dos Boney M., a pergunta chega às nossas mãos: “como havemos de cantar a canção do Senhor em terra estranha?” Muito mais se se trata do canto da alegria, o canto de Yahveh: Aleluia! Provavelmente, nunca nos foi tão difícil…
Na verdade, a terra estranha não se encerra nos confinamentos e desconfinamentos, nas perdas e nos desencontros que nos foram dados viver. A terra estranha alarga-se aos conflitos esquecidos, estende-se aos refugiados negligenciados, abraça as violentas fronteiras da Venezuela e de Myanmar, fez casa em Cabo Delgado. Recordo ainda, junto com tantos outros, o pequeno Tomás. O guerreiro amado que, com os seus pais e amigos, se tem empenhado em cantar ‘aleluia’ na terra estranha da doença e da diminuição. Provavelmente, nunca nos foi tão difícil dizer ‘aleluia’.
Esta dificuldade não é alheia ao texto bíblico. Se olharmos com atenção para as aparições do ressuscitado, veremos facilmente que a primeira comunidade aprendeu a custo a dizer ‘aleluia’. O peso da pedra, a dor da perda e o grande ceticismo interno – em particular em relação às mulheres que anunciavam ter visto o ressuscitado – colocaram intensos obstáculos à ousadia de dizer: aleluia. Poderá, na verdade, esse encontro com os intensos obstáculos de que nos fala o texto bíblico deixar-nos a paredes meias com os estorvos que nos impedem de cantar hoje o canto do Senhor em terra estranha?
É urgente regressar a essa primeira Páscoa. E que viria a ser esta primeira Páscoa? Talvez a perceção de que ‘aleluia’ não é fruto do planeamento ritual nem do esforço religioso da humanidade, mas dom. Dom que nos visita de forma inaudita, cheio daquela paz que convive com uma violência suave que é própria do inesperado. O caminho dos dois discípulos de regresso a Emaús permite-nos regressar a essa primeira Páscoa, com a lentidão própria de aprender a dizer ‘aleluia’. Enquanto caminham, vão surgindo elementos importantes e, diria mesmo, transversais aos nossos dias, que os ajudam a reaprender a cantar ‘aleluia’ diante do que lhes é estranho.
A. O estranho
Curiosamente, o primeiro elemento que brinda a conversa e a discussão dos discípulos é o estranho. O estranho da situação é o que toma iniciativa em caminhar com eles, gerando espaço para que as perguntas não fiquem esquecidas no alforje. O estranho era Jesus, porém, diz o texto, “os seus olhos estavam incapazes de O reconhecer”. O original grego descreve esta incapacidade ocular com a palavra ékratoûnto – conjugação verbal de krátos (poder). Donde se depreende que a impossibilidade de reconhecer a Jesus não tem necessariamente a ver com a fisionomia do estranho, mas com uma incapacidade de exercer poder diante do estranho e nele reconhecer a vida nova a acompanhá-los.
O estranho aparece-nos no caminho como quem tem autoridade para nos confrontar com o nosso não poder; podendo mesmo oferecer-nos o poder de não poder. Não se trata de um trejeito linguístico ou retórica sinuosa. Olhamos aqui para o mesmo poder de não poder que o ressuscitado impôs a Maria Madalena, desejosa que estava de o tocar e reter: “Não me detenhas” (Cf. Jo 20, 17). Do mesmo modo aqui: o estranho exige o poder de não poder. Trata-se de reconhecer que tudo começa na humildade, no poder de não poder que o estranho exige a quantos não se lhe ocultam.
Tomando a iniciativa, levantando perguntas e horizontes que a normalidade tende a confinar no âmbito do íntimo-individual, o estranho apareceu-nos no caminho. Não se trata aqui de identificar a pandemia com o estranho que nos visita. Deus não é pandémico; Deus é cura e Vida abundante! Trata-se de perceber que a ocorrência da pandemia abriu a porta ao estranho, ao desconforto e ao incógnito que já caminhava connosco há muito tempo.
E assim o estranho, como a caminho de Emaús, com tão pouco abriu espaço para tanto: “que palavras são essas”? Que palavras têm provocado em nós estes tempos estranhos?
B. A pergunta
O estranho tem este hábito de não se impor com respostas mas de passar a palavra e dar que pensar: “Que palavras são essas que trocais entre vós ao caminhar?” Jesus identifica-se com este estranho que nos convida a perdoar Pandora e a permitir que a caixa se abra, sem sufocar as perguntas que há tanto tempo armazenávamos cá dentro. Por isso, o poder de não poder que o estranho provoca não é uma ameaça mas uma libertação. Libertação de perguntas que já estavam cá dentro, libertação de paradigmas de realização baseados no poder individual e que pouco a pouco trouxeram ao burnout coletivo. Dá que pensar?
Sim, o estranho dá que pensar porque habita o profundo de todos os símbolos (a morte, o silêncio, o afastamento, a máscara que vela o acesso ao outro) – e os símbolos dão que pensar. O estranho, o diferente do que nos é imediato, não se esgota portanto naqueles que esteticamente reconhecemos como outros ou diferentes. O estranho é a voz abafada que vem do fundo dos símbolos, o misterioso que irrompe e nos passa a palavra como quem tem autoridade, antes mesmo de lhe conferirmos um lugar autoritativo.
E assim o estranho, como a caminho de Emaús, com tão pouco abriu espaço para tanto: “que palavras são essas”? Que palavras têm provocado em nós estes tempos estranhos? Muitos poderão dizer: já chega de referir os maus acontecimentos do tempo presente. Não têm fé? Cantemos aleluias e viremos a folha ao livro. Mas, pergunto-me: como havemos de fazer justiça ao canto do Senhor sem levarmos a sério este terreno estranho da dor, da paixão e do desatino? Como chegar a dizer um ‘aleluia’ honesto, capaz da divindade e da humanidade do Senhor? Como cantar ‘aleluia’ evitando a paixão de quantos ainda hoje procuram, na incerteza, o melhor modo de acompanhar aqueles que amam e a crucifixão de quantos, abandonados, se viram abandonar os dias?
Num artigo para a revista Mensageiro do mês de abril deste ano, a irmã Xiskya Valladores – a chamada ‘freira do Twitter’ [monja tuitera] – afirma que nunca como antes lhe chegam ao Twitter e ao TikTok questões novas, que não se respondem numa linha. “Uma pergunta tabu para muitos até recentemente: Como reconhecerei os meus avós no Céu? Conversas impossíveis que agora são uma realidade. Não será tudo isto a presença do Ressuscitado no meio da pandemia?”
C. Da fragmentação à releitura
A primeira tentação dos discípulos de Emaús, pelo menos de Cléofas, é a de tomar a palavra, narrar o acontecimento desde a fragmentação. Nós acreditávamos mas as autoridades condenaram-no. Nós não sabemos do corpo de Jesus mas umas mulheres dizem que ele está vivo. Nós e eles! A fragmentação e a rutura foram e são fenómenos muito presentes nos tempos do estranho. Desde a vida familiar à vida social, o estranho dá espaço e passa-nos a palavra. Permite que se manifestem os corações nas divisões que nenhum presidente, por mais poder-krátos que possa ter, é capaz de criar de raiz. As divisões já cá estavam, os nossos olhos é que não tinham tempo para as reconhecer.
A fragmentação gerada por este modo de narrar é censurada de modo veemente pelo estranho viandante. Em vez de dar razão a uma parte em detrimento de outra ou aludir a uma razão superior à qual eles nunca teriam acesso sem a sua menção, o estranho convida à releitura, ao exercício da memória que acredita o que já era saber comum. Aponta para um ‘aleluia’ que, como no Mundo Quebrado de Gabriel Marcel, só conduzirá à comunhão dos santos se reconhecermos que estamos já todos ligados numa comunhão de pecadores. O Papa Francisco começou este exercício de releitura quando, no dia 27 de março de 2020, na vazia praça de São Pedro, articulou esta oração:
Chamas-nos ao tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho.
Sim, para vencer a fragmentação das narrativas não bastou que Jesus convidasse à releitura dos acontecimentos. É urgente ampliar a hospitalidade (…)
D. A recuperação da hospitalidade, da mesa e do gesto
Não é apenas um detalhe de beleza cénica que o estranho ressuscitado faça uma releitura do passado no meio do caminho. A releitura não é um exercício que se faça fora do tempo, ignorando as oscilações do caminho e o calor dos dias. A releitura não pressupõe um freeze, no qual o tempo se detém, o poder estratégico olha desde cima o curso dos eventos para poder planear a resposta oficial. A releitura não é estratégia, é tática; isto é, um exercício de agilidade espiritual que mostra a sua justeza por ser capaz de nos manter humilde e eficazmente em caminho. Mas em caminho em direção a quê?
A fragmentação que o confinamento impôs sobre nós trouxe à luz as nossas falsas seguranças e divisões humanas, mas não as superou. Acentuou-se a raiva diante da sensação de não poder alcançar os meus fins com os outros. Eles ou nós! Torna-se assim patente que o confinamento e a fragmentação não se vencem com o desconfinamento ou com exercícios de releitura que nos agradem, mas com hospitalidade. Foi neste intuito que, na linha de Francisco de Assis, o Francisco de Roma nos interpelou com a Encíclica Fratelli Tutti [Todos irmãos], dizendo:
A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar deste desafio e deste dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo. Aquelas pessoas reconheciam que todos os valores por elas cultivados deviam ser acompanhados por esta capacidade de se transcender a si mesmas numa abertura aos outros. (nº 90)
Sim, para vencer a fragmentação das narrativas não bastou que Jesus convidasse à releitura dos acontecimentos. É urgente ampliar a hospitalidade, é vital apostar na auto transcendência que supera todos os tribalismos – pessoais, eclesiais e sociais – nos quais nos encafuamos consciente ou inconscientemente. Daí que, sem imposição do estranho, os discípulos de Emaús percebam que a releitura que os retirou da fragmentação ficaria incompleta sem o dom da hospitalidade, da mesa e do gesto de partilha.
Não pensemos já nas fronteiras! Vamos abster-nos de pensar primeiramente no macro e acolhamos a sabedoria do grão de mostarda. Quem são os outros que desconhecem ainda o calor das nossas mesas? Quem é esse outro que ainda nos é estranho mas poderia ser hóspede das nossas melhores palavras? Poderá esse outro-acolhido desconfinar do meu coração uma nova forma de vida que, nas palavras do Cardeal Tolentino, “não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas”?
E. O regresso ao coração e à comunidade
Podemos então dizer que sem a hospitalidade nunca aprenderemos a dizer ‘aleluia’ com o coração e com a comunidade? Sim! Eis a aposta cristã. Já se tornara percetível com o bom ladrão, mas depois da fração do pão – o gesto de partilha que capacitou os olhos para reconhecer vida nova na presença do estranho – é inegável. Mas não sejamos inconscientes: a hospitalidade que vence a fragmentação não nos chega sem cruz nem paixão. De nós depende escolher esta beleza estranha que salva o mundo. Uma beleza estranha que caminha connosco, não foge da dor, permite as nossas perguntas, convida-nos à releitura, manifesta-se plenamente no acolhimento livre e, apenas assim, resgata de nós essa voz silenciosa mas entusiasmada que anseia por dizer ‘aleluia’.
Não se trata de um ‘aleluia’ que se resume a uma confissão individual ou se despersonaliza apenas para lutar pela cidade de Deus. O ‘aleluia’ de Cristo é tão pessoal quanto social, mas para isso é preciso deixar-se acompanhar pelo estranho, chegando a acolhê-lo dentro do mundo como vida nova da graça.
Fotografia: Ksenia Makagonova – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.