Domingo
Domingo cheguei ao museu por volta das oito e um quarto e espantou-me ver a porta lateral fechada. É por aí que entra o pessoal para se fardar. Dirigi-me, por isso, à porta principal dobrando a esquina.
Que fariam dois carros de polícia estacionados mesmo à frente do museu? Entrei. No átrio das bilheteiras deparei não só com os polícias e os outros vigilantes mas com a própria direcção do museu. Algo de muito estranho tinha acontecido. Pensei logo no quadro. E tinha razão.
– Roubaram o quadro de Cristo! – disse uma vigilante mal entrei.
– O quê? Mas não o levaram ontem para a cave?
– Sim, levaram. E dois seguranças ficaram lá a vigiá-lo a noite inteira. De repente, quando olharam, o quadro tinha desaparecido!E não viram ninguém nem ouviram nenhum barulho estranho. Estão a ser interrogados agora e o mais natural é irem presos!
– Que estranho! – disse eu – Como é que os guardas não acordaram com os ladrões? Se calhar foram adormecidos com gás.
– Eles juram que estiveram a noite inteira à conversa e a jogar cartas na sala onde estava o quadro e que nunca adormeceram nem saíram dessa sala, cinco segundos que fosse. E o mais estranho é que no filme da videovigilância aparece tudo exactamente como eles dizem. Vêem-se sempre os guardas a jogar às cartas, de costas para o quadro. Às quatro e tal da manhã o quadro está lá e no segundo seguinte desapareceu e só se vêem os guardas a continuar a jogar e uma parede branca por detrás deles. Só meia hora depois é que um deles se virou e deu pela falta do quadro. Telefonaram logo para a polícia.
– Que estranho, como é que se rouba um quadro sem fazer barulho, com aquela moldura tão pesada e tudo?
– Não, a moldura nunca chegou a vir para a cave. Para a cave, ontem, trouxeram só a tela, que estava encaixada na moldura. A moldura está exactamente no sítio onde estava, onde o quadro esteve exposto, na Sala dos Arcos.
– E a exposição vai abrir mesmo assim?
– A directora diz que sim. Aliás, olha, aí vem ela.
– Acho que o João já sabe do sucedido – disse a Dr.ª Pilar olhando para mim com ar grave e pretensa calma. – Creio que a si também o querem interrogar mais tarde, mas não se preocupe que este roubo não tem nada a ver com o seu trabalho. Aliás pedia-lhes que se fossem fardar para podermos abrir as portas. A exposição continuará mesmo sem o quadro. Já colocámos avisos à entrada para informar o público de que não poderão ver esta obra.
De facto, reparei que, por todo o lado, havia cartazes afixados que diziam, num tom levemente dramático: “ESTIMADO VISITANTE, NÃO PROCURE ENTRE OS QUADROS O DE CRISTO. DESAPARECEU”.
Fardei-me e entrei na sala. Realmente lá estava a moldura. Totalmente vazia. Era uma imagem bem estranha. Senti quase uma certa solidão, como quando alguém parte e fica apenas a sua ausência. Sem dúvida que os guardas tinham adormecido. Ou tinham adormecido por si próprios ou alguém os tinha feito dormir. Mas como é que aparecem no filme os guardas à conversa e a jogar? Será que os guardas são cúmplices? Mas como cairiam nessa, sendo eles os suspeitos mais óbvios e os primeiros a serem incriminados?
A entrada do público fez-se em avalanche, como na véspera. Muitos tinham lido o aviso e dirigiam-se imediatamente para o local. Outros não sabiam de nada e paravam no sítio do quadro, espantados. Uns e outros bombardeavam-me com perguntas, já que era eu que ali estava, junto à moldura vazia. Às tantas, quase me ri do ridículo do meu papel de vigilante de uma ausência. Mas não saí dali. Assumi até com um certo estranho orgulho a missão de guardião da memória daquele Cristo e de porta-voz do mistério do seu desaparecimento.
E, claro, Ana voltou. Voltou a meio da manhã. A forma apressada como entrou fez-me suspeitar que já tinha lido o aviso. A meio da sala vi a sua cara de espanto. Ao chegar diante da moldura vazia pensei que ia desatar de novo a chorar. Mas não. A sua reacção foi surpreendente. Primeiro ficou parada diante do quadro, de boca aberta, como quem está a pensar centenas de pensamentos ao mesmo tempo. Depois exclamou em voz alta, como se estivesse sozinha:
– Ah malandro!
E desatou a rir às gargalhadas. Ria sem parar com o riso mais feliz do mundo, dava voltas e quase dançava enquanto ria. Reparando que eu estava ali, voltou-se para mim e disse:
– Podem acontecer coisas novas e inesperadas! Está a ver? Afinal podem acontecer coisas novas e inesperadas!
E ria.
Nesse dia, durante o interrogatório a que me submeteram, menti. Menti quando me perguntaram se eu suspeitava quem tinha afixado um papel na parede dentro da moldura vazia. Fiz-me surpreendido e pedi para ver o papel. Dizia assim:
“Mesmo quando o mundo cai
e te parece sinceramente que tudo acabou
e que já nada de novo pode acontecer sobre a face da terra
não desistas de acreditar e de sorrir:
com Ele há sempre mais vida,
nada é o fim”
PROPOSTA DE REFLEXÃO
Tira um tempo para estares com Jesus. Se te ajudar usa os seguintes pontos de reflexão e de diálogo com Ele:
Medita como a Ressurreição de Jesus – a forma de presença mais íntima que possamos imaginar – começa na enorme desilusão do Seu túmulo vazio. Recorda como na tua vida, no passado, experimentaste vazios que foram, depois, portas de passagem para novas experiências de sentido.
Fica na presença do Senhor Ressuscitado a teu lado, saboreia essa presença íntima e cheia de paz. Pensa com Ele que podes tirar de bom dos vazios e das perdas que tens experimentado ultimamente.
A Páscoa em três atos – I. Exposição e Azáfama
A Páscoa em três atos – II. Sorriso ou sofrimento?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.