A minha primeira vez em Auschwitz

Publicamos um artigo de Leonídio Paulo Ferreira publicado pela primeira vez no DN de 9 de maio de 2016. Foi essa a primeira vista deste jornalista a Auschwitz. Marcas que ajudam a não esquecer.

Publicamos um artigo de Leonídio Paulo Ferreira publicado pela primeira vez no DN de 9 de maio de 2016. Foi essa a primeira vista deste jornalista a Auschwitz. Marcas que ajudam a não esquecer.

Chove em Auschwitz e o céu está carregado de nuvens negras. Faz sentido. É um sítio triste de visitar, mesmo passados 71 anos sobre a sua libertação pelo Exército Vermelho. Há quem chore, como é o caso de um militar israelita, e quem abane a cabeça a pensar como tanto horror foi possível. Mas a maioria dos visitantes escolhe o silêncio, enquanto ouve os guias polacos explicar como funcionavam os campos de concentração nazis. Não sei se sentem o corpo tenso, um mal-estar geral, uma estranha melancolia. Eu sinto. E continuo a sentir enquanto escrevo estas palavras, minutos depois de terminada a visita a Auschwitz I e a Auschwitz II – Birkenau.

Chove em Auschwitz e não sei o que é pior, se ver as duas toneladas de cabelo de mulher expostas numa sala (“tiveram de morrer 40 mil para tanta quantidade”, diz Lucasz, o meu guia), se entrar na câmara de gás onde, de cada vez, eram mortas 800 ou 900 pessoas. Ou se me comove mais visitar a cela do padre polaco que se ofereceu para ser punido em vez de outro preso e foi morto pela Gestapo após duas semanas de fome ou os sapatinhos de bebé arrumados numa vitrina.

Chove em Auschwitz e admirar a coragem do nosso Aristides, ter visitado antes a casa de Anne Frank e o campo de Dachau ou ter visto A Lista de Schindler e lido Imre Kertész não me defende do choque de Auschwitz. Foram 1,3 milhões de presos entre 1940 e 1945, dos quais 1,1 milhões morreram, fosse na câmara de gás, abatidos a tiro, de doença ou de fome. De início, os nazis usaram o antigo quartel polaco como campo para enviarem presos políticos polacos. Depois, chegou a hora do extermínio dos judeus, sobretudo a partir de 1944, com o número de húngaros a ultrapassar o de polacos.

Chove em Auschwitz, e cá continuam os carris construídos para facilitar a máquina assassina montada por Hitler. Os comboios cheios de judeus chegavam até aqui e logo era feita a separação: os mais velhos, os mais fracos, as grávidas e as crianças eram enviadas para as gigantescas câmaras de gás, destruídas em Birkenau pelos nazis em fuga (só resta a de Auschwitz I, mais pequena). As famílias eram separadas, era a última vez que se viam mas não sabiam. Os nazis diziam-lhes que iam tomar duche.

Talvez não chova em Auschwitz quando o Papa visitar o campo. Será em final de julho, durante a Jornada Mundial da Juventude, neste ano em Cracóvia. Francisco ajudará a relembrar ao mundo o que foi o Holocausto, e como a Polónia católica ocupada pelos alemães perdeu a sua população judia mas deu mais Justos ao Yad Vashem em Israel do que qualquer outro país. Também para o Papa argentino será a primeira vez em Auschwitz. Talvez também sinta náuseas, mesmo ele, sempre tão alegre.

Artigo originalmente publicado no DN de 9 de maio de 2016

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.