A viver a Páscoa, é oportuno tomar consciência desta realidade que cada vez mais autores diagnosticam: o mundo ocidental vive uma situação civilizacional de pós-mortalidade. Um sinal entre nós: em setembro de 2016, a Intercampus, num estudo de sua iniciativa, perguntou aos portugueses: – Acredita que há vida para além da morte? 54,6% responderam que não. Este dado, porventura surpreendente, é significativo para a reflexão que aqui se faz, sobre a irrelevância da Morte de Cristo na idade pós-mortal que vivemos.
O processo desenvolveu-se ao longo das últimas décadas e vários fatores se conjugam, levando a esta progressiva situação sociocultural que elimina a morte, não apenas da experiência mas também da consciência dos homens deste início do terceiro milénio. Apontemos alguns dados significativos para tentar compreender os contornos desta nova realidade. Trata-se de tomar consciência de alguns dinamismos em curso na cultura contemporânea e da sua incidência social que interferem ativamente com a percepção simbólica da morte e, consequentemente, das suas representações mentais e sociais.
O acelerado progresso da tecnociência, com o impacto que conhece na sua concretização médica, alterou a capacidade e o modo de o homem se relacionar com o cosmos natural; este é progressivamente substituído por um cosmos tecnológico alternativo, que se interpõe entre os sujeitos humanos e a natureza, em vez de mediar instrumentalmente esta relação. Este é justamente chamado tecnocosmos, categoria introduzida entre nós pelo Padre Luís Archer SJ, numa conferência proferida em 1986, no Congresso Internacional “Estruturas emergentes para uma nova revolução nas ciências”, organizado pelo Centro Internacional de Epistemologia e Reflexão Interdisciplinar do Instituto Piaget; a intervenção foi publicada na revista Brotéria. O Padre Luís Archer tomou o termo do filósofo da técnica Gilbert Hottois que, em Le signe et la technique, obra de 1984, cunhou este neologismo para dizer a nova realidade na qual os sujeitos humanos perdem a relação com a sua condição natural e com os processos existenciais próprios desta condição – entre estes, talvez o mais atingido, encontra-se o processo existencial da morte.
Efetivamente, a tecnologização da vida humana, que se vai tornar progressivamente tecnologização da própria condição humana – divisa-se já a era do homo-tecno, um passo adiante do homo mechanicus que o Pe. Manuel Antunes SJ já teorizava em 1972, também na Brotéria – encontra uma das suas mais radicais expressões na medicalização da vida humana, detectada já nos anos 1970, nomeadamente pelo filósofo e teólogo Ivan Illich, na sua Medical Nemesis – The expropriation of health. Este fenómeno da expropriação da saúde reveste-se de grandes consequências, quer na percepção que o ser humano tem de si próprio, quer na prevalência e organização dos sistemas sócio-sanitários; a transformação da dor, da doença e da morte em problema técnico, especificamente médico, esvazia estas experiências do seu caráter de desafio pessoal, expropriando o potencial da pessoa singular para gerir a sua condição humana de um modo autónomo. Morrer, poucas décadas depois do mesmo ter acontecido com o nascer, tornou-se uma questão médica; perdeu a sua naturalidade, trocou de espaços e de mãos. Basta constatar que, em 1970, morreram em hospitais menos de 20% dos portugueses e que, em 2010, essa percentagem já se situa bem acima dos 60%; e atinge quase 10% a percentagem dos que morrem em outros espaços, diferentes do hospital ou da própria casa.
Em 1970, morreram em hospitais menos de 20% dos portugueses e, em 2010, essa percentagem já se situa bem acima dos 60%; e atinge quase 10% a percentagem dos que morrem em outros espaços, diferentes do hospital ou da própria casa.
Em 2012, em “A morte e o morrer entre o deslugar e o lugar”, chamei deslugarização da morte e do morrer ao processo de transferência do processo da morte para o hospital e outras instituições, sublinhando que se tratava não apenas de uma mudança de lugar, mas de uma negação de lugar. Atrevi-me a propor o neologismo deslugar, interpretando como tal o hospital. Defini deslugar como instituição ou espaço destituído das características antropológicas e sociológicas do lugar para onde são transferidas experiências vitais que implicam sofrimento e insegurança identitária para a sociedade e para o indivíduo. Para chegar a esta definição socorri-me do contributo de alguns autores dos âmbitos da antropologia e da sociologia, que propõem categorias que ajudam a definir este instrumento hermenêutico de que me servi para interpretar a situação. Ao artigo Des espaces autres, de Michel Foucault, pedi o conceito de heterotopia, espaços à parte mas em relação com a sociedade, para onde se desviam, de algum modo exilam, experiências existenciais críticas. Na obra Non-lieux, de Marc Augé, encontrei o não-lugar, espaços que não gozam das características do lugar antropológico, concretamente, não são nem identitários, nem relacionais, nem históricos, mas normalizam e anonimizam quem os frequenta. Em Modernity and self-identity: self and society in the late Modern Age, de Anthony Giddens – que me foi apresentado pelo Pe. José Maria Cabral Ferreira SJ, sábio e amigo com quem tive uma das mais preciosas conversas do período em que investiguei estas matérias – encontrei uma categoria particularmente relevante, a arena de sequestro, espaços marginais mas comunicantes para onde são segregadas as experiências existenciais perturbadoras. Os três autores apontam a morte e o morrer como uma das experiências antropológicas remetidas para os espaços que definem.
Morrer é uma experiência existencial crítica. Apenas dois títulos especialmente significativos são suficientes para ilustrar o que aconteceu no Ocidente, a partir da segunda parte do séc. XX. Culturalmente, a morte como categoria, percepção e representação vê-se transformada em tabu, como cruamente a define Geoffrey Gorer, na sua obra de 1955, The pornography of death. Socialmente, de modo cada vez mais evidente, são votados à marginalização e ao isolamento os que estão a morrer; é emblemático o livro de Norbert Elias, The loneliness of the dying, em 1985, que analisa a fundo o perfil da solidão que, progressivamente, vai amortalhando ainda vivos os que se encontram a morrer.
É determinante, no progresso sociocultural que conduz à presente idade pós-mortal, a já referida evolução tecnológica da medicina. É real o risco de esta ser instituída e/ou se autoinstituir, mais ou menos conscientemente, como ideologia, na qual a morte não cabe porque denuncia a sua presunção de omnipotência. Ao sistema médico é cometido o estatuto de um sistema pericial, separado dos circuitos normais do fluxo social, para o qual são exportadas experiências existenciais cruciais que, pelo seu carácter dramático, perturbam a frágil segurança ontológica e psicológica característica do homem moderno, na linha da reflexão de A. Gyddens. É neste horizonte que deve ser enquadrada a reflexão sobre as mortes geridas medicamente, concretamente a distanásia e a eutanásia e o suicídio assistido, que por estes dias agitam a sociedade portuguesa.
Basta recuar à década de 1950 para deparar com o sonho da a-mortalidade, baseada na esperança de que o progresso das ciências, concretamente a medicina, havia de fazer recuar a morte e torná-la menos cruel, a utopia de uma vida longa concluída sem dor e voluntariamente, sonhada por Edgar Morin, na sua obra L’Homme et la mort, de 1951. Celine Lafontaine, em La société Postmortelle. La mort, l’individu et le lien social à l’ère des technosciences, de 2008, identifica os traços da sociedade pós-mortal, deriva quimérica e redutora do desejo de imortalidade, como sustenta Luciano Manicardi, em Memoria del limite – La condizione umana nella società posmortale, lúcida obra do Prior do Mosteiro de Bose, publicada em 2011 e recentemente traduzida para português.
Tudo mudou no rosto da morte. Morre-se exilado das pertenças e, por isso, ela não se vê; dela não se fala; nela não se pensa. O tratamento dado pelo sistema mediático é objetivante. A morte foi escamoteada da vida.
Tudo mudou no rosto da morte. Morre-se exilado das pertenças e, por isso, ela não se vê; dela não se fala; nela não se pensa. O tratamento dado pelo sistema mediático é objetivante. A morte foi escamoteada da vida. Idosos e doentes, aqueles em quem a aproximação à morte se vai tornando evidente, são socialmente segregados. Não fazendo parte da experiência das famílias, a morte afasta-se também da consciência das pessoas. Na sociedade do presente, vive-se como se se não morresse: o tempo esconde a morte, na miragem inglória de se esconder da morte.
Dessocializada, escamoteada a morte, morrer não apenas deixou de ser um acontecimento social, como deixou de ser um ato do sujeito, personalíssimo, consumação do próprio destino; morrer tornou-se um mero acidente biológico, falência bioquímica e fisiológica, esvaziado de mistério e despido de ritos. Para cada vez mais filhos do Ocidente, morrer é extinguir-se, o que retira pertinência à interrogação sobre a vida além da morte, um aspeto decisivo no desenho da condição pós-mortal. Vejam-se os dados da sondagem citada no início destas linhas. Somos a primeira geração da história sem uma Ars moriendi.
Chegámos à idade pós-mortal da história. Ora, o lugar da relevância da Morte de Cristo é a experiência subjetiva de morte e a consciência da própria mortalidade. É a esta dimensão radical da condição humana que a Páscoa de Cristo oferece um sentido. Só a consciência pessoal da morte permite a consciência da necessidade da Morte do Senhor, afinal vitória sobre a morte. Esse é o dom maior, só perceptível na sua plenitude por aqueles que se sabem mortais. Tendo-se a morte tornado um não-assunto, esvaziada fica a Morte de Cristo da possibilidade de afirmar o seu carácter absoluto de resposta de Deus à necessidade do homem ser salvo da morte. Cristo vê-se relegado para qualquer outro patamar religioso, ou a-religioso, que não o da Redenção.
Recuperar a mortalidade do homem é, pois, condição de possibilidade do anúncio do Evangelho, pois é na consciência da morte pessoal que a Páscoa de Cristo acontece como experiência pessoal da salvação. Esta é, talvez, uma das dimensões maiores da profecia que o tempo pede aos cristãos. Este é um dos desafios pastorais mais altos que se colocam à Igreja, nesta idade pós-mortal da história. Aliás, já a dizem até pós-humana. É isto que nos é pedido: recuperar a mortalidade para recuperar a humanidade do homem e da sociedade humana.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.