No passado dia 1 de junho foi dada a conhecer a Constituição apostólica Pascite gregem Dei (PGD) com a qual o Papa Francisco introduziu profundas modificações no direito penal da Igreja, reformulando o Livro VI do Código de direito canónico. O Código, que contém grande parte do direito da Igreja, foi aprovado em 1983 depois de um longo processo de elaboração de perto de 20 anos, na sequência do Concílio Vaticano II. O Livro VI, dedicado às sanções na Igreja, foi objeto de especial atenção durante os trabalhos de revisão do direito canónico, já que um dos dez princípios orientadores deste processo (aprovados em 1967 pelo primeiro Sínodo dos bispos) era precisamente a reforma e melhoramento do direito penal, para simplificá-lo e adequá-lo à sensibilidade pastoral pós-conciliar.
No entanto, ao contrário de outras áreas do direito da Igreja, este campo não beneficiou de uma normativa experimental durante o período de elaboração do Código, confrontando-se, para mais, com um ambiente eclesial hostil, pela aversão à rigidez jurídica que caracterizava o período de vigência e o “estilo” do anterior Código de 1917. Assim sendo, o novo direito penal da Igreja aprovado em 1983 nasceu desde logo “torto”, por um lado, por espelhar pouco uma mentalidade (eclesial e jurídica) contemporânea e, por outro, por carecer de objetividade, deixando tanta discricionariedade aos bispos encarregados de o aplicar que se tornou um instrumento difícil de utilizar.
Já em 2009, o Papa Bento XVI encarregou o competente dicastério, o Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, de elaborar uma revisão completa do Livro VI do Código, dando início a um longo processo de amadurecimento, que envolveu estruturas eclesiais da Cúria Romana e espalhadas pelo mundo e contou com a colaboração de numerosos peritos, num espírito de colegialidade tão caro ao Papa Francisco. Durante este período, a Igreja confrontou-se com o(s) escândalo(s) dos abusos sexuais e da deficiente resposta da hierarquia, que levou a intervenções legislativas pontuais (a normativa sobre esta matéria, promulgada por João Paulo II em 2001 foi revista por Bento XVI em 2010 e, repetidas vezes, pelo Papa Francisco, em especial com os documentos Come una madre amorevole de 2016 e Vos estis lux mundi de 2019). Acalmada (mas não “resolvida”) a tempestade, pôde finalmente concluir-se o trabalho de revisão, com o texto agora publicado que passa a integrar o Código de direito canónico, alterando 63 dos 89 cânones que compõem o Livro VI.
Na apresentação do documento no Vaticano, o secretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos indicou os três critérios que nortearam a reforma: (1) a busca de uma maior determinação das normas penais, no sentido de ajudar quem tem a missão de as aplicar, reduzindo as incertezas e o perigo de arbitrariedade; (2) uma maior centralidade da proteção da comunidade como finalidade do direito penal, compensando uma visão excessivamente centrada na emenda do réu; (3) o reforço dos meios para uma intervenção preventiva capaz de limitar ou impedir a prossecução de atos delituosos, no pleno respeito pelas garantias de defesa dos acusados. A nova normativa será certamente objeto de estudo dos canonistas nos próximos anos, mas podemos desde já reconhecer o seu mérito a três níveis distintos.
Por outro lado, o mérito pastoral da reforma está também na centralidade conferida à comunidade, contra uma certa tendência “privatizadora” do direito penal que tende a restringir a sua aplicação ao âmbito da consciência individual.
1. Valor jurídico
Ainda que pouco evidente aos olhos do público em geral, o primeiro mérito da reforma operada por PGD é a melhoria “técnica” do texto normativo, tornando-o num instrumento mais adequado à própria finalidade do direito na Igreja, que é a tutela da comunhão e o favorecimento da “salvação das almas” (que é “suprema lei da Igreja”, como recorda o último cânone do Código). As alterações introduzidas contribuem, em particular, para superar um certo preconceito antijurídico difuso na Igreja pós-conciliar, o qual está por detrás de uma excessiva flexibilidade das normas penais, com amplas margens de discricionariedade que acabaram por conduzir a uma aplicação dos mecanismos sancionatórios incapaz de prevenir abusos e escândalos. As normas agora publicadas exigem portanto aos bispos e superiores religiosos, em particular, um maior rigor na apreciação dos comportamentos eventualmente delituosos e na determinação de sanções que permitam verdadeiramente “fazer justiça”.
2. Valor pastoral
O título dado ao documento pelo Papa Francisco (citando a Primeira Carta de Pedro 5,2) permite identificar imediatamente os destinatários principais desta reforma, pondo no centro a missão de pastores daqueles que como sucessores dos apóstolos detêm a faculdade de aplicar a lei enquanto juízes. O foco desta intervenção legislativa não está, portanto, na repressão de comportamentos censuráveis – ainda que também tenham sido acrescentadas novas figuras tipificadas como crime (especialmente referidas a atos de autoridade e governo) – mas uma correta aplicação do direito penal enquanto instrumento essencial para a vida da Igreja. Por outro lado, o mérito pastoral da reforma está também na centralidade conferida à comunidade, contra uma certa tendência “privatizadora” do direito penal que tende a restringir a sua aplicação ao âmbito da consciência individual. As sanções na Igreja, de facto, não visam apenas a conversão do réu, mas também a reposição da justiça e a reparação do escândalo, objetivos que exigem intervenções rigorosas e transparentes, sem prejuízo da tutela da boa fama e do direito à reserva da intimidade e da vida privada de eventuais vítimas.
3. Valor teológico
Além dos aspetos “práticos” até aqui mencionados, a revisão do direito penal levada a cabo pelo Papa Francisco constitui também uma “janela” para a ideia de Igreja que anima o Sucessor de Pedro e o esforço de reforma que o caracteriza. Um primeiro aspeto significativo é o esforço de “desclericalização” do direito penal, visível por exemplo, no alargamento de alguns tipos penais que deixam de apenas poder ser cometidos por clérigos e religiosos, ou na classificação do crime de abuso sexual de menores por parte de clérigos como ofensa à vida, dignidade e liberdade e não como violação da obrigação do celibato. Mais profundamente, o esforço que conduziu à elaboração de PGD sublinha o papel essencial do direito na vida da Igreja, também na sua modalidade repressiva, como forma de tutelar a comunhão eclesial e a própria integridade (física, psíquica e espiritual) de cada crente, sempre ameaçadas pela fragilidade da natureza humana tocada pelo mistério do mal. Um direito que não é um conjunto rígido e imutável de regras, mas uma busca continua das modalidades mais adequadas para responder aos desafios de cada tempo.
A reforma, que entrará em vigor no dia 8 de dezembro, não será certamente solução para todos os desafios que a Igreja enfrenta em matéria de comportamentos que causam dano ao Corpo de Cristo e provocam escândalo no Povo de Deus (até porque esta reforma praticamente deixou de fora aspetos processuais). Está agora nas mãos das autoridades, começando pelo próprio Papa e passando pelos bispos de todo o mundo, dar vida às normas através de uma aplicação rigorosa e transparente, fruto de um verdadeiro discernimento, sabendo que, sozinha, «a letra mata, mas o Espírito dá vida» (2Cor 3,6).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.