1. No debate sobre a legalização da eutanásia, uma das linhas de oposição mais controversas é o chamado slippery slope argument (à letra, argumento da rampa escorregadia), que assenta no seguinte raciocínio: a proposição A conduz à proposição B; a proposição B é indesejável ou inaceitável; logo, a proposição A deve ser rejeitada.
A ideia de que uma pequena tomada de decisão poderá conduzir a consequências inicialmente não desejadas é, assim, utilizada como modo de criar medo no decisor, paralisando a ação e mantendo-se o status quo. Por este motivo, este raciocínio é por vezes acusado de resultar numa falácia. Não tem, no entanto, de ser assim. Se o nexo de causalidade entre A e B for suficientemente demonstrado, o raciocínio não só não é falacioso como permite avaliar as reais consequências de uma decisão, sendo indispensável tê-lo presente para formar uma opinião.
2. Na discussão sobre a eutanásia é frequentemente alegado que uma primeira tomada de decisão no sentido da sua legalização, ainda que em termos muito restritos e aparentemente inócuos, conduzirá inevitavelmente a que se venham, no futuro, a ampliar tais condições, passando rapidamente a admitir-se a eutanásia em circunstâncias que agora consideramos inaceitáveis. Isto pode dever-se a uma habituação moral e a um relaxamento de consciências, no sentido da desconsideração da inviolabilidade da vida humana, de modo a que aquilo que hoje nos parece excecional se passe a considerar normal, alterando-se os padrões éticos vigentes; ou pode decorrer de raciocínios de base analógica, fundamentados na defesa da igualdade e não discriminação, que conduzem à ampliação dos critérios de cuja verificação depende a admissibilidade da eutanásia. Voltaremos a estes aspetos adiante.
Ora, aqueles que advogam que um passo, por mais pequeno que seja, na direção da legalização da eutanásia conduzirá a um efeito bola de neve, concluem que a única forma de a evitar é através da rejeição liminar de qualquer proposta, ainda que restrita.
Aqueles que advogam que um passo, por mais pequeno que seja, na direção da legalização da eutanásia conduzirá a um efeito bola de neve, concluem que a única forma de a evitar é através da rejeição liminar de qualquer proposta, ainda que restrita.
3. Contra estes argumentos, os defensores da eutanásia têm alegado que não há prova de que tal derrapagem seja inevitável. Pelo contrário, negam a existência de um nexo de causalidade entre a aprovação de legislação que permite a eutanásia em casos restritos e a verificação de uma evolução no sentido da sua admissibilidade em casos tidos inicialmente por indesejáveis. No entanto, o que parece não estar estabilizado é o que se entende como resultado indesejável de uma derrapagem no contexto da legalização da eutanásia.
A análise dos ordenamentos jurídicos pioneiros na descriminalização da eutanásia – o holandês e o belga -, permite constatar que o regime evoluiu no sentido do relaxamento dos requisitos da sua admissibilidade. Assim, se após análise concluirmos que o ponto a que já se chegou em cada uma destas ordens jurídicas é eticamente inadmissível, poderemos então concluir que a rampa escorregadia é, realmente, um risco a ter em conta.
O caso holandês
4. Durante as décadas de 70 e 80, os tribunais holandeses, não obstante o Código Penal consagrar a eutanásia como crime, consolidaram um conjunto de critérios cujo preenchimento permitia que se considerasse que esta havia sido praticada em situação de necessidade ou força maior, resultante de o médico se encontrar num conflito entre o dever de aliviar o sofrimento fútil do paciente e o dever de preservar a sua vida. Se perante tal conflito de deveres a decisão do médico, no caso concreto, se pudesse considerar objetivamente justificada, este não seria condenado. Em 1984, a associação holandesa de médicos afirmou-se a favor da legalização da eutanásia, desenvolvendo também um conjunto de critérios coincidentes.
Assim, quando em 2001 foi aprovada a lei que formalmente descriminalizou a eutanásia – definida pela lei como o ato de terminar intencionalmente a vida de outrem, a seu pedido -, esta já era admitida na prática, o que era amplamente conhecido pela sociedade. A lei não fez mais do que consagrar os critérios já convencionados e praticados há cerca de 20 anos:
– O pedido deve ser voluntário, esclarecido e persistente.
– O requerente deve encontrar-se em sofrimento insuportável e sem perspetivas de melhorar.
– O requerente deve ser informado sobre as suas perspetivas e opções.
– Deve ser consultado outro médico independente.
Embora um dos critérios utilizados pela comunidade médica até 2001, sem lei que os suportasse, consistisse na exigência de que eutanásia fosse requerida por um adulto, a lei de 2001 passou a permitir a eutanásia a partir dos 12 anos. Até aos 16 anos, a vontade do paciente tem de ser acompanhada de autorização dos pais (ou, em certos casos de desacordo entre os pais, de apenas um deles, ainda que o outro se oponha).
A lei reconhece ainda a validade de declarações antecipadas de eutanásia, que podem ser usadas sempre que um doente, posteriormente, perder a capacidade de emitir uma declaração válida de vontade.
Inicialmente, a eutanásia só seria uma opção se não existissem tratamentos alternativos para o paciente. No entanto, tal entendimento foi alterado, passando a permitir-se também a eutanásia se, embora existindo tratamentos alternativos (como cuidados paliativos ou acompanhamento psiquiátrico), o paciente os tivesse rejeitado.
Em 2005, foi implementado pela Sociedade Holandesa de Pediatria o chamado Groningen Protocol, que contém critérios – nomeadamente o pedido dos pais, o sofrimento insuportável e as perspetivas de qualidade de vida – que, quando preenchidos, permitem a eutanásia de crianças recém-nascidas (abaixo de um ano). Embora a lei continue apenas a prever a eutanásia de crianças acima dos 12 anos, está convencionado que, se os critérios previstos neste protocolo forem respeitados, o médico que a pratique não será apresentado à justiça. Está, assim, aberta a porta à eutanásia sem consentimento do próprio paciente.
Desde 2010 tem-se discutido a possibilidade de se permitir o acesso à eutanásia por qualquer pessoa acima dos 70 anos que se sinta cansada de viver.
Na Holanda, desde 2010 tem-se discutido a possibilidade de se permitir o acesso à eutanásia por qualquer pessoa acima dos 70 anos que se sinta cansada de viver.
O caso belga
5. Na Bélgica, foi aprovada, em 2002, a lei que descriminalizou a eutanásia – definida nos mesmos termos que na lei holandesa -, desde que cumpridos determinados requisitos:
– Tem de ser requerida por um adulto ou menor emancipado, capaz e consciente.
– O médico tem de verificar que o pedido é voluntário, ponderado, repetido (não é especificado o número de vezes) e que inexiste pressão externa.
– O requerente tem de se encontrar em situação fútil de sofrimento físico ou psicológico constante e insuportável que não seja possível aliviar, resultante de uma condição médica séria e incurável (embora não tenha de se encontrar em estado terminal).
O regime aprovado em 2002 contém ainda algumas exigências procedimentais, como a obrigação de o médico pedir uma segunda opinião, ser dada informação ao doente acerca da sua esperança de vida e dos cuidados paliativos disponíveis, e que decorra pelo menos um mês entre o pedido e a prática da eutanásia (caso o doente não seja terminal).
No caso de pessoas incapazes e inconscientes (nomeadamente, pessoas com demência, Alzheimer, entre outros), a lei introduz dois requisitos adicionais:
– A situação de incapacidade e inconsciência tem de ser irreversível;
– O requerente tem de ter redigido e assinado, quando ainda tinha consciência, uma declaração antecipada de eutanásia, válida por 5 anos.
Sublinhe-se que a possibilidade de pessoas incapazes acederem à eutanásia através de declarações passadas tem um significado relevante: a circunstância de a manifestação de vontade não ter de ser contemporânea da própria eutanásia permite concluir que o legislador renunciou à possibilidade de, até ao fim, o requerente se arrepender e revogar a sua declaração.
Em 2014, a lei foi alterada, tornando a Bélgica o único país do mundo a eliminar qualquer restrição de idade no acesso à eutanásia.Desde então, uma criança de qualquer idade pode requerê-la, desde que um psiquiatra ou psicólogo infantil certifique a sua capacidade de discernir e de entender as consequências da sua decisão. É ainda necessário que, para além dos requisitos que já resultavam da lei, a sua condição médica resulte em morte no curto prazo e que os pais concordem.
Em 2014, a lei foi alterada, tornando a Bélgica o único país do mundo a eliminar qualquer restrição de idade no acesso à eutanásia. (…) É necessário que, para além dos requisitos que já resultavam da lei, a sua condição médica resulte em morte no curto prazo e que os pais concordem.
Um argumento escorregadio?
6. Em face desta descrição, é possível concluir que a tendência de derrapagem permissiva nesta matéria é um risco real. Com efeito, verificou-se em ambos os países o alargamento dos requisitos de admissibilidade da eutanásia, após a publicação do primeiro diploma legislativo.
Contudo, o slippery slope argument é, por si só, fraco e frágil, na medida em que não afere da bondade nem da proposição A (o primeiro passo) nem da proposição B (o passo seguinte, inicialmente não desejado). O facto de a permissividade dos critérios nos dois ordenamentos analisados ter vindo a aumentar não significa necessariamente que a derrapagem seja nociva. Pelo contrário, pode argumentar-se que esta é virtuosa e que o primeiro passo foi o que permitiu que se avançasse num bom caminho. Alguém que defendesse a discriminação racial poderia defender que permitir que pessoas de diferentes raças frequentassem os mesmos espaços iria ser o início da desgraça, conduzindo à permissão de casamentos inter-raciais, e por aí fora até haver plena igualdade. Neste sentido, a política dos pequenos passos pode ser a única maneira de alterar mentalidades e fazer a sociedade evoluir para melhor.
Assim, o facto de se ter demonstrado que as legislações belgas e holandesas iniciaram o seu processo de legalização da eutanásia com uma legislação mais restritiva, tendo posteriormente alargado os seus critérios de admissibilidade, não é suficiente para advogar que tal evolução é errada e perigosa. Há, efetivamente, quem considere que negar às crianças a possibilidade de requerer a eutanásia é uma discriminação errada e que, portanto, admiti-la é uma medida positiva.
Por todos estes motivos, embora a descrição das legislações sobre a eutanásia na Bélgica e na Holanda permita concluir que se verifica, sem dúvida, uma enorme derrapagem pela ladeira da eutanásia em direção à sua liberalização, só poderemos qualificar tal derrapagem como nociva através de outro tipo de argumentação, de índole moral e ética.
Em suma, o slippery slope argument não é suficientemente convincente para desmotivar a legalização da eutanásia, se utilizado de forma isolada.
Assim, o facto de se ter demonstrado que as legislações belgas e holandesas iniciaram o seu processo de legalização da eutanásia com uma legislação mais restritiva, tendo posteriormente alargado os seus critérios de admissibilidade, não é suficiente para advogar que tal evolução é errada e perigosa.
E, no entanto…
Qual é, então, a vantagem de constatar a existência de uma evolução permissiva dos regimes de outros países? É que, associada a uma boa argumentação complementar que dê consistência material aos problemas éticos da eutanásia no geral e à sua admissibilidade em casos particulares, a tomada de consciência de que existe uma tendência para a expansão do acesso à eutanásia ajuda-nos de duas formas distintas.
Em primeiro lugar, permite-nos conhecer as intenções daqueles com quem debatemos. A própria ideia de derrapagem é aproveitada pelos ativistas da liberalização da eutanásia, que bem sabem que se propuserem, desde o início, requisitos muito permissivos, a reação da sociedade será negativa. Assim, não podendo chegar ao seu intuito final de uma só vez, optam por defender uma legalização em termos muito limitados para que, depois desse primeiro passo, a sociedade passe a achá-lo natural e se prepare para aceitar o passo seguinte.
Os ativistas da eutanásia não aceitam restringir os casos em que esta é admissível por se terem conformado com tais limitações, mas apenas para conseguirem obter um primeiro passo em direção à sua legalização. Assim, após a aprovação de uma primeira versão da lei, não dão o tema como encerrado, mas começam antes a preparar a próxima alteração à mesma.
Em segundo lugar, dá-nos a consciência da dificuldade que é traçar limites em matéria de dignidade da vida humana. A inviolabilidade da vida humana e, consequentemente, a regra segundo a qual não é permitido matar intencionalmente, é um limite objetivo, claro, e não sujeito a interpretações. Contudo, a partir do momento em que esta linha seja atravessada, torna-se quase impossível arranjar justificações que permitam traçar um novo limite lógico. Se aceitarmos a eutanásia para acabar com o sofrimento insuportável dos doentes terminais, teremos de nos perguntar: porque “discriminamos” aqueles que também vivem em sofrimento insuportável, mas não são doentes terminais? Se aceitarmos a eutanásia nos casos em que a doença não tem cura, teremos de nos perguntar: porque “discriminamos” aqueles que têm doenças que demoram tempo a curar e que não querem passar por esse processo doloroso? Se aceitamos a eutanásia para respeitar a liberdade individual daqueles que não aguentam mais sofrer com uma doença, teremos de nos perguntar: porque “discriminamos” os que não estão doentes, mas sofrem porque estão simplesmente cansados de viver?
O raciocínio analógico, que parte de uma identidade material entre duas situações para concluir que o regime aplicável a uma deve ser também aplicado à outra, pode até criar dúvidas de violação do princípio da igualdade: pode o legislador permitir a eutanásia para certo grupo de pessoas, mas vedá-la a outras? Não será a própria distinção uma forma de discriminação? Por exemplo: se admitimos a pessoas com capacidade de decisão o acesso à eutanásia, mas o negamos aos incapazes, não estaremos a discriminar os mais velhos e os portadores de deficiência ou demência, colocando-os numa posição ainda mais difícil e obrigando-os a suportar o sofrimento que os capazes não têm de suportar? E se admitimos o acesso à eutanásia aos maiores de idade, não será este limite arbitrário para aqueles que estão a uns meros seis meses (ou sete? ou oito?) da maioridade?
Estes limites podem ser traçados, numa primeira fase, para obter consensos que permitam aprovar uma lei, mas rapidamente começarão a ser questionados.
Estes limites podem ser traçados, numa primeira fase, para obter consensos que permitam aprovar uma lei, mas rapidamente começarão a ser questionados.
Queremos atravessar o limite?
Ora, tais dúvidas, em matéria de vida humana, deveriam ser sempre resolvidas através de um princípio básico: na dúvida, deve ser sempre protegida a vida (e, neste caso, limitada a eutanásia). No entanto, não é isto que se verifica na prática: havendo dúvidas em matéria de fixação de limites e de igualdade entre situações, esta acaba por se resolver através da extensão da permissividade. A opção pela extensão é compreensível, visto que, perante a conclusão de que o limite traçado é discriminatório, a alternativa seria dar um passo atrás, e não permitir a eutanásia nem a menores nem a maiores, nem a incapazes nem a capazes. Contudo, quando estas questões se colocam, a sociedade já se habituou à eutanásia e já não está disposta a retroceder.
A constatação da existência de um efeito bola de neve na legislação da eutanásia em países como a Bélgica e a Holanda permite-nos precisamente concluir que a consciência humana é elástica, pelo que vai relaxando os seus limites e relativizando as objeções éticas que lhe pareciam inultrapassáveis. Qualquer pequeno passo na legalização da eutanásia exige que, como sociedade, deixemos de considerar que causar a morte a outrem é inadmissível. Será esta uma linha que queremos atravessar?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.