Como havemos de dar esmolas? Bastará dispensar umas moedas ou notas para dar esmolas? Recordo-me sempre de uma história que a minha irmã me costumava contar. Um escritor francês tinha por hábito ir escrever para a Torre Eiffel. Quando lhe perguntaram porque admirava tanto aquela torre, a ponto de lá escrever todos os dias, o escritor surpreendeu os seus ouvintes dizendo: “Venho diariamente porque é o único sítio de onde a torre não se vê.” O mesmo nos poderá acontecer com as práticas quaresmais se nos faltar uma distância saudável, capaz de olhar estes meios espirituais à luz da sua finalidade. Se nos aproximamos destes meios espirituais sem atendermos à sua finalidade, corremos o risco de deixar de ver aquilo que, no fundo, desejamos.
Na verdade, que nos diria Inácio para nos ajudar a entender a esmola como um caminho afetivo e efetivo de aproximação de Cristo e do próximo? Proponho que nos detenhamos em três cenas cinematográficas, lendo-as à luz das sugestões que Inácio de Loiola nos deixou nas suas regras para o ministério de distribuir esmolas (Cf. Exercícios Espirituais 338-344). Em cada caso, a cena proposta há de nos oferecer uma abordagem prática e paradigmática a cada regra proposta por santo Inácio.
1. Discernir a fonte [Exercícios Espirituais 338]
No livro Les Miserables, Victor Hugo retrata o renascimento de Jean Valjean como fruto de um ato de bondade insuspeito. Um bispo acolhe o foragido J. Valjean que lhe assalta os bens, foge e é apanhado pela polícia; para mais tarde ser surpreendido com a esta reação:
A bondade do bispo não parece ter a sua fonte apenas na empatia afetiva por Jean Valjean mas encontra as suas raízes na caridade de Deus e na possibilidade prática de abrir condições para uma vida nova.
Do mesmo modo, na sua primeira regra, Inácio afirma: “que o amor que me move e me faz dar a esmola, desça do alto, do amor de Deus nosso Senhor, de forma que eu sinta primeiro em mim que o amor maior ou menor que tenho a essas pessoas é por Deus, e que na causa por que as amo, transpareça Deus”.
Lendo o texto devagar, apercebemos que na expressão “transpareça Deus”, Inácio não pretende anular a empatia com a caridade que desce do alto. Antes, pretende que ambas se informem mutuamente: o amor a Deus e ao próximo. Ao dar esmola, podemos por isso perguntar-nos: aquilo que move o meu coração a amar esta pessoa, transparece em mim os sinais do Reino de Deus que são a alegria, a paz e a justiça (Cf. Rom 14, 17)?
2. Dar peso e medida à minha decisão [EE 339-341]
No coração da revolução industrial, Charles Dickens inventou este incrível personagem, Ebenezer Scrooge, desafiado a mudar de vida e a tornar-se generoso numa noite de Natal. O método de Dickens para operar a mudança de Scrooge é a visita de três espíritos que o ajudam imaginativamente a objetivar a sua falta de generosidade no modo de tratar as pessoas e os bens que possui. A imaginação torna-se por isso um modo de avaliação, porque o força a objetivar as qualidades internas do seu modo de vida.
Do mesmo modo, nas regras 339 a 341, Inácio convida-nos a objetivar a qualidade da nossa esmola imaginando três cenários diferentes: (1) imaginar-me como se eu fosse outra pessoa e a estivesse a aconselhar sobre a esmola que está sob decisão, (2) imaginando-me às portas da morte, (3) ou no juízo final diante de Deus, que decisão gostaria de ter tomado? Diante destes três cenários, a imaginação pretende ajudar-nos a dar objetivar qual a decisão que desejaria ter tomado em relação a esta esmola, colocando-me imaginativamente diante de uma destas três situações limite.
Mais do que encostar-nos à parede por causa de um par de moedas ou mais, Inácio pretende apontar para a nossa imaginação como instrumento capaz de nos ajudar dar um peso e medida aos afetos que se movem no nosso interior. Nestes casos convirá perguntar com a ajuda da imaginação: que aconselharia outro a fazer no meu lugar ou por que decisão gostaria de ser recordado diante de Deus e do mundo?
3. O critério inspirador do nosso amor [EE 342-344]
No final do filme A Lista de Schindler, sempre me tocou muito a questão do personagem principal acerca da possibilidade de ter salvo mais judeus. O seu remorso por não ter salvo mais do que aqueles que salvou ecoa uma pergunta profundamente humana: qual é a medida da nossa entrega, neste caso, quando sabemos que demos o suficiente?
Inácio de Loiola é muito cauteloso e, para nos ajudar a encontrar a medida da nossa esmola, propõe duas recomendações. (1) Quando nos sentimos afeiçoados às pessoas ou causas a quem queremos dar, convém ponderar bem as regras anteriores, discernindo a fonte da minha inclinação em dar esmola e dando peso e medida à minha decisão através da imaginação. (2) Quando não sabemos qual deve ser a medida da nossa generosidade em relação a determinada pessoa ou causa, convém pôr os olhos em Cristo e dos santos, a fim de decidir o que é bom entregar para benefício do próximo e o que é justo conservar para o sustento de si mesmo e/ou da própria família.
Num tempo de guerra, como é o nosso, no qual as exigências da realidade podem estar já a levantar no nosso coração a pergunta “que é justo e bom que eu faça?”, as regras de Inácio podem ter um valor inestimável para a nossa vida. Possam o discernimento da fonte da nossa generosidade, a eficácia da imaginação para nos ajudar a dar peso e medida ao valor afetivo das nossas decisões, e o exemplo de Cristo e dos santos como critério inspirador do nosso amor, servi-nos de guia e estímulo para a nossa esmola.
Fotografia de: Jeremy Yap – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.