A dor de perder é tão imanente à natureza humana tal como é o amor. Um não existe sem o outro e tentar anular, ignorar ou disfarçar a necessidade de um deles é anular, ignorar ou disfarçar a própria vida. A dor de perder e o processo de luto são vivências, simultaneamente, tão universais como únicas. Se, por um lado, são experiências partilhadas por todos nós, criando espaços e tempos de entendimento, comunhão e partilha, são também experiências inequivocamente singulares e irrepetíveis, criando a necessidade de acolhermos a individualidade da dor e do doer em cada um de nós. O acolhimento genuíno da diversidade, sem a procura incessante de avaliar, analisar ou categorizar.
O processo de luto tem uma poética própria que o torna num inverno da alma (Romanyshyn, 1999). É um espaço-tempo que necessita de ser reconhecido, respeitado e valorizado. É um espaço-tempo inteiramente compassivo. É um tempo que espera por nós, mesmo que a sociedade contemporânea não o faça. A partir dele largamos folhas, encontrando caminho para uma vasta paisagem de sentimentos. A partir dele florescem processos de resignificação de identidade e do sentido da vida.
Sendo uma vivência de dor total, manifesta-se nas várias dimensões humanas: física, emocional, mental e espiritual. Falta de apetite, fadiga, sentimentos de tristeza, culpa, zanga, vazio, medo, impotência e alívio, falta de memória e concentração, sonhos com quem perdemos são apenas alguns, poucos, exemplos destas manifestações. E na nossa complexidade e multiplicidade, desenham em conjunto um percurso ao longo do tempo, que é também ele pessoal e intransmissível. É um tempo que só a natureza conhece e reconhece, é orgânico, cíclico e não pode nem ser acelerado nem interrompido. É por isso uma via de reencontro com a nossa própria natureza, a natureza humana.
A natureza e o significado do vínculo dão o tom àquele que é fundamentalmente um itinerário de reconhecimento da perda, de vivência de dor, de ajustamentos necessários à vida e de resignificação da relação para além da presença do outro.
A relação com quem perdemos revela ser um dos aspetos fundamentais que modela o processo de luto (Worden, 2018). A natureza e o significado do vínculo dão o tom àquele que é fundamentalmente um itinerário de reconhecimento da perda, de vivência de dor, de ajustamentos necessários à vida e de resignificação da relação para além da presença do outro. Sendo nós seres intrinsecamente relacionais e profundamente narrativos, a nossa história e a história que contamos sobre o mundo escrevem-se na relação e através da relação. Assim sendo, quando desaparece o outro, também a nossa história e a do mundo perdem as referências habituais e sucede-se um espaço sem sentido e um tempo de procura. É um percurso imensamente existencial e espiritual. Quanto mais forte for o vínculo, mais assim o é. Quanto maior for a força do amor, mais assim o é. Vamos navegando entre a dor e a vida para além da perda, em movimentos de dança, com passos e ritmos que não dependem tanto e só da nossa vontade consciente, mas de uma biografia e de uma trajetória da própria alma.
O contexto que permeia a perda tem também importância no processo de luto. De uma forma simples e resumida, podemos dizer que existem perdas mais ou menos traumáticas e perdas mais ou menos esperadas. E existem aquelas, dos quais se fala cada vez mais e mais, que são os lutos sem lugar, as perdas não reconhecidas e não validadas pela nossa cultura. Falamos, por exemplo, das perdas gestacionais, das perdas de animais de estimação, de perdas por crime ambiental, crises e transições de vida, e tantas outras. E esta questão toma ainda uma pertinência maior quando nos apercebemos que a humanidade vive uma era que dá sempre pouco espaço e muito pouco tempo à dor em geral e à dor da perda em particular. E assistimos à dor de ter perdido este lugar tão fundamental que a dor da perda tem na nossa existência e na nossa alma, traduzindo-se numa epidemia de ausência de esperança, de propósito e de pertença.
Quando falamos do lugar do luto, falamos também do significado de comunidade. É ela que ampara e tece a rede de suporte que nos liga à vida e ao sentido da vida. Seja na sua dimensão humana, ecológica ou espiritual, sem ela a vivência da perda é alimentada pela sombra da solidão e do desespero. Torna-se urgente curar o que nos separa e que só acontece no resgate do lugar da dor e da perda, concedendo-lhes de novo o direito de existirem e de fazerem parte do tecido que nos liga e que nos une. A força criativa da arte e da natureza têm aqui uma participação fundamental, como mestres da capacidade de dar significado e de renascer das trevas. Resgatemos pois esse lugar.
Referências Bibliográficas
Romanyshyn, R. (1999). The Soul in Grief: love, death and transformation. Berkeley, CA: North Atlantic Books.
Worden, J. W. (2018). Grief Counseling and Grief Therapy: a handbook for the mental health practitioner (5th Ed.). New York, NY: Springer Publishing Company.
Grupo Casa, Luto – Grupo comunitário de partilha de entre pessoas que partilham um processo de luto. Pela Compassio, associação para a construção de comunidades compassivas. De 11/01/2022 a 22/02/2022, sete sessões online.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.