A mensagem do Papa para esta quaresma encontra-se totalmente em sintonia com a única encíclica do magistério do Papa Francisco: Louvado sejas, Sobre o cuidado da casa comum, publicada em 2015. É uma encíclica também social, uma vez que integra os âmbitos do ambiente e do desenvolvimento, da ecologia e da justiça. O Papa Francisco é particularmente sensível ao clamor dos refugiados, dos descartados, das vítimas inocentes dos grandes conflitos, mas também ao clamor das criaturas. Esta encíclica procura sensibilizar-nos para um dos problemas mais urgentes do nosso tempo e que tem a ver com a destruição por parte do ser humano do ambiente de que ele faz parte, ameaçando a sua própria sobrevivência. Trata-se duma questão grave com consequências dramáticas para as gerações vindouras, que está a atingir primeiramente os mais pobres, que são sempre os mais vulneráveis.
É uma encíclica que por um lado alerta para esta ameaça, mas por outro encara com esperança a resposta a este desafio, que terá de ser conjunta e estender-se a toda a comunidade internacional. Tendo como base a revelação, a Igreja apresenta o seu contributo, procurando entrar em diálogo com uma série de outros interlocutores (instituições intergovernamentais e grandes religiões), agentes de decisão importantes no rumo dum mundo globalizado.
Contudo, “a mensagem do Papa para a quaresma de 2019” (assinada significativamente com a data da Memória de São Francisco de Assis) não pode deixar de causar surpresa pois propõe-nos que consideremos como ponto de esforço desta quaresma, em vista da Páscoa, o cuidado com as criaturas. É um documento conciso e incisivo, o que lhe imprime força. Há um refrão que se repete sucessivas vezes ao longo desta mensagem que confere unidade a todo o documento: «A criação encontra-se em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). São pelo menos 7 vezes as repetições deste versículo na íntegra ou parcialmente ou então do versículo Rm 8, 21, que lhe é equivalente.
Não temos consciência da violência que levamos dentro, mas esta acaba por se manifestar nas nossas relações uns com os outros e com as criaturas. Diz Santo Inácio de Loiola que Deus está “presente e trabalha” nas criaturas: a presença dinâmica de Deus nas criaturas tem também em vista a sua libertação
Aliás o versículo Rm 8, 19 constitui simultaneamente a epígrafe e o título do documento. Igualmente importante a sequência dos três subtítulos que atravessam o documento: 1. A redenção da criação; 2. A força destruidora do pecado; 3. A força sanadora do arrependimento e do perdão.É o amor mais forte que a morte (Ct 8, 6),que se manifesta de forma eminente na Páscoa, que permite renovar ou levar à perfeição a criação segundo os desígnios de Deus. É um documento onde se multiplicam as referências à “criação” e às “criaturas” (23 ocorrências) e ao seu clamor. O conjunto do documente tem claramente como horizonte a “Páscoa” (6 ocorrências), que confere sentido libertador. Na sua Páscoa, Jesus Cristo é de facto o verdadeiro Moisés, que leva a termo a libertação da humanidade e da criação.
É um documento de grande beleza que contrapõe, por um lado, o “Cântico do irmão sol” ou “Cântico das criaturas”, de São Francisco de Assis e, por outro, o clamor das criaturas oprimidas. A expressão “pegada ecológica” lembra um exército invasor que tudo esmaga à sua passagem. Não temos consciência da violência que levamos dentro, mas esta acaba por se manifestar nas nossas relações uns com os outros e com as criaturas. Diz Santo Inácio de Loiola que Deus está “presente e trabalha” nas criaturas: a presença dinâmica de Deus nas criaturas tem também em vista a sua libertação. Por outro lado, por duas vezes, o binómio “jardim”que se contrapõe a“deserto”.
No plano de Deus, a criação é um jardim, que o pecado destrói convertendo em deserto; na sua Páscoa, o Senhor Jesus abre a passagem que do deserto te conduz novamente ao jardim. A Bíblia como um todo deixa perceber que o homem é colocado à frente da criação, para que dela cuide, e que as próprias criaturas também terão lugar nos “novos céus e na nova terra”. Como obra de Deus, toda a criatura tem um valor intrínseco e não apenas enquanto meio potencialmente útil ao homem. O pecado é o que oprime, roubando a liberdade e desfigurando a nossa identidade de filhos de Deus, em vista da qual somos criados, mas o pecado espezinha igualmente as criaturas e o seu lugar no plano de Deus.
Não só aqueles que te são mais próximos, mas também a criação exibe estigmas testemunhando o impacto do teu pecado. Procura esta quaresma estar mais atento à repercussão na criação dos teus pequenos gestos e rotinas quotidianas, e constatarás certamente que esse esforço terá repercussões positivas nas tuas relações com Deus e com os outros. A tua arrogância e complexos de inferioridade (duas facetas da mesma desordem) manifestam-se no modo como carregas no acelerador ou então buscas compensações no consumo desenfreado das criaturas!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.