Ninguém quer ser fariseu. Também duvido que alguém queira ser como o levita ou o sacerdote que passaram ao largo do homem ferido na estrada. Contudo, há um tema específico que parece suscitar, muito frequentemente, reacções opostas, semelhantes aos comportamentos destas figuras. Só o pronunciamento da expressão que lhe dá o nome causa diferentes tipos de ansiedade. Falo, sem grandes surpresas, da emergência climática.
A ansiedade do fariseu é a de quem se sente indignado porque o outro não está a agir correctamente, ou seja, da maneira como eu ajo, como se a salvação se comprasse por esforço individual; a do levita e a do sacerdote é a de quem está demasiado ocupado para pensar em assuntos menores e particularidades – assuntos esses que, na realidade, causam desconforto. A problemática do clima é tão complexa, por um lado, e tão difícil de associar a rostos concretos, por outro, que é, por isso, fácil de descartar. A verdade é que independentemente das nossas reacções e descrições da realidade, o consenso científico é o de que as alterações climáticas que sofremos hoje são impulsionadas pela acção humana e já estão a pressionar e matar os mais vulneráveis (pequenos agricultores, idosos, mulheres, crianças).
Escusado será dizer que nenhuma destas reacções ansiosas é a solução. Um problema global que afecta a Humanidade só pode pedir uma resposta igualmente global, um diálogo em que todas as partes (que estejam de boa fé) são ouvidas. As nossas preocupações devem virar-se, por isso, entre outras coisas, para a diplomacia internacional e para as actividades empresariais e aí as notícias não são particularmente animadoras. Todo o esforço político parece não estar à altura do desafio: basta dizer que desde o acordo de Paris, em 2015, as emissões de CO2 provenientes de combustíveis fósseis aumentaram em mais de 3% (United in Science Report / Global Carbon Project).
Confrontados com este falhanço e com a desilusão da COP25 (25ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas), que terminou no passado dia 15, temos de colocar questões de fundo. Porque é que todos os anos, conferência após conferência, o cenário é cada vez pior? Sabemos o que é preciso fazer desde os anos 80 e ainda assim não vemos nenhuma mitigação, apesar do crescente mediatismo do assunto. O que é que está a falhar?
A este respeito, não vem a despropósito uma análise da dinâmica do pecado. Soubemos, aliás, há relativamente pouco tempo que a Igreja está a pôr em consideração a instituição de um “pecado ecológico”, tal como proposto no documento final do Sínodo da Amazónia (ponto 82). Evidentemente que isto se aplica às decisões diárias de cada Católico, para que viva a Doutrina de forma plena, mas sabemos que se trata igualmente de uma responsabilização dos principais decisores políticos e económicos: os pecado pessoais nos quais radicam as “estruturas de pecado”, referidas por São João Paulo II, que “ofende[m] a Deus e prejudica[m] o próximo, introduzindo no mundo condicionamentos e obstáculos, que vão muito além das acções de uma pessoa e do breve período da sua vida” (Sollicitudo Rei Socialis, 36).
O pecado ecológico não é só interessante pelo peso institucional que carrega, mas sobretudo porque nos convida a compreender a complexidade da sua actuação. Pense-se, por exemplo, nas aparências de bem; na tendência do pecado para a inércia, para se esconder, para se justificar, para voltar o Homem sobre si mesmo e, sobretudo, de como nunca (mas nunca!) saímos do pecado sozinhos.
Temos de ser vigilantes quanto a teorias que tratam o Homem como intrinsecamente mau e, portanto, como um elemento a mais no planeta; ou de que será injusto gerar mais vidas humanas num planeta em risco de falência
Na COP25, em Madrid, tal como em COPs anteriores, observam-se facilmente estas tendências. Este ano, os principais compromissos falhados prenderam-se com um acordo sobre a regulação dos Mercados de Carbono (o artigo 6 do acordo de Paris, que trata do comércio de “licenças” para emitir CO2) e com os mecanismos relativos a Perdas e Danos (“Loss and Damage”), i.e., a alocação de recursos para compensar os países que mais sofrem com os efeitos das alterações climáticas. No caso dos Mercados de Carbono, a Austrália e o Brasil, para além de contarem duas vezes as mesmas reduções de emissões nos seus planos nacionais de mitigação (NDC – National Determined Contribution), planeiam manter os “créditos” de emissões que provêm do acordo de Kyoto, contra todos os outros países. No caso das Perdas e Danos, os E.U.A., que se preparam para a retirada do Acordo da Paris, em Novembro de 2020, para além de bloquearem novas ideias de financiamento, fizeram pressão para não ter de participar mais neste mecanismo. O resultado destes conflitos foi arrastar esta decisão mais uma vez para o ano seguinte.
Evidentemente que estes não são os únicos países responsáveis pelo atraso na tomada de decisões e muito menos quer isto dizer que estas são as únicas decisões que importam (e evidentemente que também houve decisões positivas, ainda que menores). No entanto, são decisões centrais que são contornadas por uma tendência para desconsiderar a visão de longo prazo e a solidariedade global que este tipo de cimeiras procura construir em conjunto. Enquanto existirem pessoas e países incapazes de ceder nos seus planos de crescimento autocentrado, não haverá paz para a Humanidade.
A inércia a que nos temos habituado com estas longas negociações é capaz de nos afastar de qualquer mensagem de esperança. No entanto, há um contributo fundamental que a ideia de pecado pode trazer a esta problemática e que é o seu corolário: o de que a reconciliação é sempre possível. Temos de ser vigilantes quanto a teorias que tratam o Homem como intrinsecamente mau e, portanto, como um elemento a mais no planeta; ou de que será injusto gerar mais vidas humanas num planeta em risco de falência. É importante que não nos esqueçamos e que estejamos à altura das palavras do Papa Francisco na encíclica Laudato Si, sobre o Cuidado da Casa Comum: “Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa deste mudo, peço para não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar.” (LS 205) Tenho de nos manter fiéis a este amor e respeitar a dignidade de cada pessoa no mundo, incluindo a nossa própria dignidade. Até onde estamos dispostos a testemunhar a possibilidade de reconciliação com a Criação e com os pobres? Podemos e devemos fazê-lo junto dos decisores que nos são mais próximos, de todas as formas possíveis.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.