A barca do cardeal: desaprender e reaprender os símbolos

No brasão do cardeal Czerny, a imagem, embora estilizada, não é simplesmente uma barca, mas uma barca com refugiados e migrantes. A barca torna-se não apenas “salvação do pecado”, não só “identidade eclesial mas “provocação ao acolhimento".

No brasão do cardeal Czerny, a imagem, embora estilizada, não é simplesmente uma barca, mas uma barca com refugiados e migrantes. A barca torna-se não apenas “salvação do pecado”, não só “identidade eclesial mas “provocação ao acolhimento".

Um dos pontos sólidos a partir dos quais é possível reconhecer a vitalidade ou a estagnação, a fecundidade ou a aridez de uma tradição é constituído pela renovação e pelo enriquecimento dos seus símbolos fundamentais.

A cruz, o cordeiro, a porta, a água, o pão, o vinho e muitos outros são símbolos cristãos. São muito antigos e têm uma grande autoridade. Mas são símbolos por dois motivos: porque significam uma fé, uma transcendência e porque permanecem enraizados na cultura, na imanência. Assim, mantêm essa autoridade não simplesmente “repetindo-se a si mesmos”, mas também sofrendo novas leituras, cedendo a novas histórias, entrando em novas vidas, relendo-se em novos contextos.

Permanecem como símbolos se ficarem abertos a novas leituras e possibilitarem novas aventuras. Permanecem como símbolos se soubermos aprendê-los, desaprendê-los e reaprendê-los, como diz bem um texto do Instrumentum Laboris do Sínodo para a Amazónia (IL 102).

Foi esse o pensamento que saltou à minha cabeça assim que uni as duas imagens destacadas neste meu texto: o brasão do novo cardeal [Michael Czerny, SJ] e a barca dos migrantes. No brasão, retoma-se, em forma estilizada, aquela imagem da realidade quotidiana. Essa aproximação inesperada fez-me pensar no imaginário eclesial da “barca”, que é muito antigo e pesca nos textos bíblicos, e que os Padres utilizaram pelo menos com dois grandes protótipos: a arca de Noé e a barca de Pedro. Uma interpretação penitencial e uma interpretação eclesial acompanharam durante séculos o imaginário e a simbólica da barca, como forma plástica de relação com Cristo e com a Igreja.

Mas algo novo ocorre no brasão do cardeal Czerny. Obviamente, tudo o que foi permanece como substrato, como linguagem que sustenta a imagem. Mas a própria imagem, embora estilizada, não é simplesmente uma barca, mas sim uma barca com pessoas, com refugiados, com migrantes. Eis a novidade: a barca torna-se não apenas “salvação do pecado”, não só “identidade eclesial”, mas também “provocação ao acolhimento”. Demanda de porto. Demanda de desembarque.

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Brasão do novo cardeal jesuíta Michael Czerny

A barca e a viagem que transformam

Julgo que, pela primeira vez, olhando para o brasão do cardeal Czerny, me dei conta de como mudou o nosso olhar sobre o viajar (por mar, por terra ou pelo ar). Tudo agora está programado. Sabemos os horários, os destinos, os lugares, os tempos, as modalidades. Temos “navegadores” que nos dizem continuamente o caminho, os desvios, as alternativas, os abrandamentos, os tempos de chegada. Até as peregrinações são agora feitas com ar-condicionado e com uma chegada diretamente ao destino. No brasão do cardeal, estão os últimos peregrinos. Aqueles que não sabem se chegarão, aonde chegarão, a quem chegarão. Mas têm uma meta que é guardada pelo desejo e que espera no acolhimento. Confiam-se a um acolhimento possível, mas não garantido. A viagem, ao longo dos séculos, sempre teve essa característica “de migrantes”. Cada viajante se tornava, por um período curto ou longo, um migrante. Todos os que viajavam entravam na condição dos migrantes. Conta-se que J. S. Bach, para ir escutar o grande Buxtehude, fez no início do século XVIII uma viagem de quatro semanas (que se tornaram quatro meses), sozinho, a pé, sem qualquer garantia, para chegar a Lubeque, percorrendo 400 quilómetros, e poder descobrir a arte do grande organista. Hoje, somente os migrantes viajam assim. A nossa dificuldade de os reconhecer e acolher depende de uma memória curta e de uma indiferença comprida. Acolhê-los torna-se um elemento distintivo, profético, evangélico, numa cultura da autodeterminação que elimina qualquer inconveniente e vai diretamente à meta, com uma regularidade imediata e controlada. Sem memória e com indiferença.

Em baixo está escrito “Suscipe”. Este é o lema de Inácio e do cardeal jesuíta. Pode-se traduzir por: toma, assume, acolhe, mas também encarrega-te, mas também toma sobre ti, mas também aguenta, mas também sustenta. O sujeito a que se dirige, o destinatário do imperativo é Deus, mas não é só Deus. Um Deus contagioso permite ler a barca como “barcaça”. E a Igreja como porto. E as simbólicas invertem-se. E renova-se a fé. Um brasão cardinalício torna-se uma hermenêutica eclesial e cultural de primeira qualidade. E podemos exibir todos os terços do mundo, podemos invocar todos os corações imaculados que conhecemos, mas aquela imagem espeta-se na nossa carne e não nos dá mais trégua. Suscipe. Sume.

Tradução de Moisés Sbardelotto e Mário Almeida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.