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Talvez fosse fácil olhar para este ano como o capricho de um deus zangado. E, desse modo, o incompreensível seria mais fácil de suportar. Ou então, encontraríamos a quem culpar por este tempo tremendo que nos tem sido imposto.
Há filhos que processam os pais por os terem obrigado a nascer. E quem jure que para viver num mundo como este não vale a pena gerar vida nova. E há também aquela mãe, que tendo perdido tudo e dado à luz num campo de refugiados, põe ao seu filho o nome de “Blessing” que quer dizer Bênção.
Um mero apelo à resiliência como modo de voltar a olhar para aquilo que experimentamos em 2020 revelaria uma enorme falta de pudor: há quem sofra bem mais além de qualquer condescendência ou paternalismo.
Mas há atitudes que podemos cultivar e que nos podem ajudar a olhar com verdade e esperança para este ano.
Primeira atitude – Baixar as armas
Este foi um ano ruidoso. Ruídos dentro de nós e à nossa volta. Irritações, protestos, opiniões cheias de certeza esgrimidas em alta voz, palavras de quem sabe misturadas com palpites cheios de eloquência e atrevimento. Uma segurança com pés de barro, afirmada no tempo da maior insegurança. É hora de baixar as armas, de exercitar a humildade.
Segunda atitude a que somos convidados – Reconhecer as máscaras que caíram
No ano em que todos cobrimos o rosto, fomos confrontados com a nossa vulnerabilidade. Desfizeram-se certezas, planos e seguranças. Tocou-nos o incerto que trouxe medos e ansiedades. E assim recordamos a nossa finitude de criaturas. Por largos que sejam o horizonte e o universo, somos limitados. Deus não nos envia pandemias para que tomemos consciência desta condição. Mas faz-Se presente para nos recordar que não é esse o nosso fim. Que máscaras caíram do meu rosto este ano? Que máscaras caíram do rosto daqueles com quem me cruzo? Como lidei com essa nudez
Terceira atitude – Ouvir os apelos
A nudez com que fomos confrontados pode ser ocultada tanto pelos ruídos, como pela revolta. Podemos ficar zangados com Deus, indignados com quem decide, espalhar sarcasmos pelas conversas e pelas redes sociais. Seria muito pouco. Como é que aquilo que aconteceu me pode tornar mais consciente da minha vulnerabilidade e da vulnerabilidade dos outros? Como me pode tornar mais atento à dor dos que mais sofrem? Como pode fazer de mim uma pessoa mais próxima, capaz de reaprender os laços de forma criativa?
Este é o tempo em que todos reconhecemos que não somos auto suficientes. Sairemos deste tempo mais isolados, incapazes de acolher o outro ou com maior sentido comunitário, praticando a hospitalidade, reconhecendo que todos somos responsáveis por todos?
Finalmente podemos cultivar uma quarta atitude – Vigiar o coração
Precisamos de vigiar os efeitos que os acontecimentos têm dentro de nós. Se nos deixamos mover pelas irritações, pelo desejo de encontrar culpados, pela vontade de acusar, pela cegueira das nossas certezas, estaremos a gerar fossos e desertos que isolam. Mas podemos cultivar a gratidão pelos gestos de entrega, reconhecer a imaginação dos que espalham a alegria, reparar na paciência dos que não desistem de amar todos os dias. A procura da justiça, o empenho pelo bem, a exigência com quem tem responsabilidades não se cultivam com corações encolerizados. Corações encolerizados semeiam divisão.
Precisamos de vigiar o nosso coração para encontrar dentro de nós a gratidão e a paz que nos possam mover à comunhão.
Olhar com verdade e esperança para o ano que passou não é um convite a ser ingénuo. É dispor-se a ser movido pelo Espírito que Deus nunca deixa de nos comunicar. E é esse espírito que nos permite reconhecer cada tempo como um tempo abençoado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.