Caros amigos
Começamos hoje o Ano Inaciano. Celebramos 500 anos da Batalha de Pamplona. Nessa batalha, Iñigo de Loyola foi gravemente ferido e, caindo ele ferido, com ele caiu a cidade. Para este cavaleiro de valentia, mais do que a ferida física, doí-lha o orgulho. Esta ferida marcá-lo-ia para o resto da vida. E não tanto por ficar coxo, com uma perna defeituosa que muito lhe feria a imagem, mas a marca ia mostrando que a ferida é mais profunda. Era uma ferida interior que faria arder o coração.
Celebramos hoje 500 anos de uma ferida. A partir daquele dia, daquela batalha, daquela ferida, Inácio de Loyola nunca mais foi o mesmo. Nasceu ali um peregrino. Um peregrino que calcorreou quilómetros infindáveis, mas que percorreu caminho interiores nunca antes experimentados.
Este é o percurso de uma conversão que deu muitos frutos. Alguns desses frutos trazem-nos aqui hoje a esta celebração, 500 anos depois. A partir deste acontecimento, Inácio vai transformando o seu olhar sobre si mesmo, sobre o modo como Deus atua, sobre as outras pessoas, sobre todas as realidades criadas à face da Terra. Este é um olhar que lhe permite “ver novas todas as coisas em Cristo”.
E tudo começou numa guerra, numa batalha perdida, numa perna gravemente ferida.
No Evangelho de S. João, numa das aparições de Jesus Ressuscitado, há uma frase que diz: “mostrou-lhes as mãos e o lado [i.e. as feridas] e eles encheram-se de Alegria!” Mas, ter-se-ão os discípulos alegrado pelas feridas do seu Senhor? Claro que não! Alegram-se porque aquelas feridas permitem identificar o Mestre. Passaram a fazer parte da sua história, da sua identidade mesma. Aquelas feridas, também elas ressuscitam e surgem, já não como marca de dor e sofrimento, mas somente como marca de amor e entrega total.
Tal como em Jesus, tal como nos seus discípulos, tal como em S. Inácio, também assim em cada um de nós.
Se este ano pudesse ser esse estímulo para deixarmos Deus curar e trabalhar as nossas dificuldades! Poderíamos sair daqui com o desejo de uma vida realmente renovada: mais livres para acolher com garra a missão que nos é dada, mais alegres porque com vidas mais simples e mais partilhadas com quem tem menos.
Celebrar a Batalha de Pamplona ou a conversão de Sto. Inácio, não é apenas invocar uma memória de 500 anos. Trata-se de aproveitar este Ano Inaciano como estímulo para cada um de nós, para as nossas famílias, as nossas comunidades, os nossos trabalhos e missões… um estímulo de real transformação. Há na nossa vida e na vida inúmeras feridas, dificuldades, obstáculos, tantas perdas, tantos sonhos não vividos. Vivemos numa sociedade também ela com batalhas e feridas profundas, algumas escondidas que a pandemia revelou, outras que acelerou ou aprofundou. Mas vivemos entre questões fraturantes, polarizações, incapacidade de diálogo entre diferentes, dentro e fora da Igreja. As nossas feridas.
Se este ano pudesse ser esse estímulo para deixarmos Deus curar e trabalhar as nossas dificuldades! Poderíamos sair daqui com o desejo de uma vida realmente renovada: mais livres para acolher com garra a missão que nos é dada, mais alegres porque com vidas mais simples e mais partilhadas com quem tem menos. Que este ano nos ajude também a nós a “vermos novas todas as coisas em Cristo”. E que seja para todos nós ocasião de construir alguma coisa de novo. Que possamos afirmar que, no dia 31 de julho de 2022, os pequenos mundos em que nos movemos, são mais justos, há mais partilha. Que cada um de nós tenha tido menos tempo para si e mais para os outros, que tenha menos dinheiro na conta bancária, para que outros possam ter mais bens essenciais, que tenha havido menos gente em solidão, porque nós estivemos lá.
Que seja o Ano da nossa peregrinação. Não invoquemos as dificuldades ou mesmo as feridas como obstáculo! Bem sabemos que elas podem ser trampolim para sairmos de nós mesmos e ajudar a curar as feridas dos outros.
Agradeço de coração a tantas pessoas, jesuítas e não jesuítas, leigos, leigas, padres, religiosos e religiosas que colaboram connosco e com quem nós colaboramos. É sempre um motivo de grande consolação a experiência de não estarmos sozinhos nesta peregrinação. Muito obrigado por partilharem connosco a Missão de Cristo.
É um ano, certamente, para pedir perdão por tanto bem que ficou por fazer, ou mal que tenhamos feito, mas é claramente um ano de gratidão por tanto bem, feito ao longo de 500 anos por tantas e tantas pessoas que se uniram a esta espiritualidade.
Continuemos juntos a propor ao mundo que “veja novas todas as coisas em Cristo” e que, a partir desse olhar, possa ir renascendo um mundo renovado, especialmente mais justo, em que nos aproximemos dos mais pobres, em que todos possam ter acesso aos bens da criação, em que possamos todos juntos ir cuidando da casa comum e que, a nossa vida possa apontar, não para nós próprios, mas para o Senhor da vida.
Um bom Ano Inaciano para todos!