Uma nova era para a Igreja católica na China?

O que significa, para a Igreja no seu todo, o acordo provisório celebrado no final de Setembro entre a Santa Sé e a China?

Ainda o Papa Francisco se encontrava de visita pastoral aos países bálticos, quando o Vaticano surpreendeu o mundo com o anúncio de um acordo provisório com a República Popular da China. Sobre o teor desse pacto, celebrado no passado dia 23, em Pequim, pouco se sabe ainda, mas já é certo que se propõe a unificação dos católicos desse país, bem como o reconhecimento da Igreja católica pelas autoridades chinesas e vice-versa. Desde que se instaurou o regime comunista no antigo império do meio, a Santa Sé não tem relações diplomáticas com a China.

Não se sabe ao certo o número dos católicos na China, mas devem rondar uma dezena de milhões, que coexistem em duas comunidades antagónicas: a formada pelos bispos, padres e leigos filiados na associação patriótica, que é controlada pelo Partido Comunista chinês; e a clandestina, que é fiel ao Papa e perseguida pelas autoridades oficiais. A reconciliação entre os católicos ‘oficiais’ e ‘clandestinos’ é o grande objectivo deste acordo provisório e é também o tema principal da Mensagem do Papa Francisco aos católicos chineses e à Igreja universal, do passado dia 26-9-2018.

Não é de agora a intenção de reconciliar e unificar a Igreja católica na China. Já São João Paulo II e Bento XVI, este último pela sua Carta aos Católicos Chineses, de 27-5-2007,  tentaram, em vão, a reunificação de todos os católicos chineses, mas sem abandonar aqueles que, até à data, pagaram tão duramente pela sua fidelidade a Roma. O acordo, agora alcançado pelo Papa Francisco, parece ter sido conseguido à margem desse princípio, na medida em que foi obtido na base do reconhecimento dos bispos afectos à associação patriótica, que estavam em situação canónica irregular.

A ordenação episcopal, sem mandato papal, é formalmente válida mas, segundo o direito canónico vigente, é punida com a mais severa das penas eclesiásticas: a excomunhão automática, reservada ao Santo Padre, que recai tanto sobre os bispos ordenantes como sobre os ordenados. Quer isto dizer que um padre ordenado bispo, sem ordem pontifícia, é verdadeiramente bispo, mas está fora da Igreja católica, pelo menos enquanto durar a excomunhão que sobre ele recaiu, por ter sido ordenado sem a devida autorização papal. Mas, como é óbvio, o Santo Padre pode, em qualquer momento, levantar essa excomunhão e integrar esse bispo na hierarquia eclesial, nomeadamente como bispo diocesano.

Como o Papa Francisco declarou na sua referida carta, sete bispos ‘patrióticos’, que se encontravam em situação irregular, foram agora plenamente aceites na Igreja católica: “decidi conceder a reconciliação aos restantes sete bispos ‘oficiais’ ordenados sem mandato pontifício e, tendo removido todas as relativas sanções canónicas, readmiti-los na plena comunhão eclesial”. Como posteriormente declarou o Cardeal Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, todos os bispos chineses estão agora, formalmente, em comunhão com o bispo de Roma o que é, certamente, uma óptima notícia.

Uma questão particularmente sensível para as difíceis relações entre a Santa Sé e a República Popular da China é a que respeita à nomeação dos bispos católicos, que a Igreja entende ser da sua exclusiva competência, mas em que o Estado chinês pretende interferir. No pontificado de Bento XVI tinha-se chegado a um consenso sobre esta matéria: seriam as autoridades políticas a nomear os bispos, entre três candidatos propostos pelo Vaticano. Xi-Ping não só não manteve este acordo verbal, como intensificou a perseguição contra os católicos, nomeadamente demolindo igrejas, interditando peregrinações religiosas, encerrando sites católicos e proibindo aos filhos dos fiéis chineses a assistência à missa e à catequese. Com o recente acordo provisório, é provável que se tenha chegado a uma solução de compromisso, na medida em que a China não desiste do seu propósito de intervir nas nomeações episcopais e, por sua vez, o Papa Francisco garantiu que a Santa Sé terá sempre, como é lógico, uma palavra a dizer no que respeita à nomeação dos seus bispos.

A submissão dos católicos ‘clandestinos’ aos bispos ‘patrióticos’ é um enorme sacrifício que lhes é agora pedido, em nome da unidade da Igreja católica na China, pelo Papa Francisco.

Graças ao acordo agora alcançado entre o Vaticano e Pequim, o Papa reconheceu sete bispos ‘patrióticos’, nomeados pelo governo chinês à margem das leis canónicas. Foram agora plenamente integrados na hierarquia da Igreja católica e reconhecidos pelo sucessor de Pedro como legítimos bispos. Nessa sua nova condição, são também os representantes do Papa nas suas respectivas dioceses e todos os fiéis católicos, ‘patrióticos’ e ‘clandestinos’, lhes devem, portanto, respeito e obediência. Não será fácil, para os fiéis que pagaram tão cara a sua fidelidade à Igreja e ao Papa, aceitar um bispo que foi nomeado e ordenado à revelia da Santa Sé, e que, afinal, deve ao Partido Comunista chinês a sua condição episcopal. A submissão dos católicos ‘clandestinos’ aos bispos ‘patrióticos’ é um enorme sacrifício que lhes é agora pedido, em nome da unidade da Igreja católica na China, pelo Papa Francisco. Queira Deus que esses valerosos cristãos sejam capazes de mais este acto heróico, em ordem à reconciliação de todos os católicos chineses.

Os bispos ‘patrióticos’, agora readmitidos na Igreja católica, também não têm uma tarefa fácil a cumprir: “peço-lhes – escreveu o Papa Francisco – para expressarem, por meio de gestos concretos e visíveis, a reencontrada unidade com a Sé Apostólica e com as Igrejas espalhadas pelo mundo, e para, não obstante as dificuldades, se manterem fiéis à mesma”. Não consta, ainda, que nenhum desses bispos tenha feito essa declaração que, por ser contrária aos princípios da associação patriótica, poderá acarretar o desagrado das autoridades chinesas. Pelo contrário, recentemente, já depois do estabelecido e divulgado o acordo provisório agora alcançado, renovaram publicamente o seu compromisso de fidelidade ao Partido Comunista chinês.

Há quem pense que, ante as cedências da diplomacia vaticana e a exiguidade de contrapartidas, este acordo provisório, mais do que uma reconciliação da China com a Santa Sé, tratou-se de uma verdadeira capitulação da Igreja católica frente à República Popular da China. De facto, muitas foram as concessões feitas pela Santa Sé. Mas também é verdade que era necessário um primeiro gesto de ‘boa vontade’, que estabeleça um clima propício às negociações a desenvolver no futuro.

Era necessário um primeiro gesto de ‘boa vontade’, que estabeleça um clima propício às negociações a desenvolver no futuro.

O Papa Francisco, na sua referida carta aos católicos chineses, reconhece os méritos dos ‘clandestinos’, mas pede a todos os fiéis que contribuam para criar um clima de confiança com as autoridades, que permita à República Popular da China ultrapassar os seus preconceitos em relação à Igreja católica. Depois de normalizadas as relações entre as autoridades políticas e eclesiais, será então possível acertar os aspectos em que agora foi imperioso ceder. Como escreveu o Papa Francisco, “este acordo introduz elementos estáveis de colaboração entre as autoridades do Estado e a Sé Apostólica, com a esperança de garantir bons pastores à comunidade católica”.

Decididamente, começou uma nova era para a história da Igreja católica na China. Mas, para que este auspicioso acordo vingue, são necessários dois milagres: que os católicos ‘clandestinos’ tenham a caridade heróica de perdoar e aceitar os bispos ‘patrióticos’; e que estes, gratos ao Santo Padre pela sua plena integração na hierarquia católica, tenham a coragem de abjurar o comunismo e afirmar a sua comunhão com o sucessor de Pedro e com a Igreja universal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.