Paulo VI, um papa para tempos controversos

A figura de Paulo VI permanece enigmática. Acusado, por uns, de falta de firmeza e, por outros, de falta de ousadia, Paulo VI assumiu a missão de manter a unidade da Igreja, numa altura em que esta tremia fortemente.

Duas efemérides do presente ano remetem para o Beato Paulo VI: os cinquenta anos da encíclica Humanae vitae, no passado dia 25 de Julho, e os quarenta anos da morte do seu autor, o Papa Montini, no dia 6 de Agosto.
Talvez nenhum papa do século vinte tenha sido tão malquisto como Paulo VI. Para os progressistas, Giovanni Battista Montini ficou aquém de tudo o que pretendiam, em nome do ‘espírito’ do Concílio Vaticano II; os conservadores, pelo contrário, censuravam a sua aparente tibieza na repressão dos erros teológicos e dos experimentalismos litúrgicos e pastorais que, segundo o seu entendimento, ofendiam a ortodoxia e a tradição eclesial. Por isso, houve quem considerasse Paulo VI um papa hamletiano, mas é mais provável que as suas aparentes indecisões, mais do que manifestações de uma suposta fraqueza de carácter, fossem, na realidade, uma desesperada tentativa de manter a doutrina católica e, ao mesmo tempo, a unidade da Igreja em que, segundo as sua dramática expressão, o fumo de Satanás se infiltrara.

Talvez nenhum papa do século vinte tenha sido tão malquisto como Paulo VI. Para os progressistas, Giovanni Battista Montini ficou aquém de tudo o que pretendiam, em nome do ‘espírito’ do Concílio Vaticano II; os conservadores, pelo contrário, censuravam a sua aparente tibieza na repressão dos erros teológicos e dos experimentalismos litúrgicos e pastorais que, segundo o seu entendimento, ofendiam a ortodoxia e a tradição eclesia

P. Gonçalo Portocarrero de Almada

A Paulo VI coube a difícil tarefa de continuar e concluir o Concílio Vaticano II, que o seu predecessor, São João XXIII tinha convocado mas que, a sua inesperada morte, tinha deixado sem timoneiro. Se, como se diz em Roma, nos concílios há a fase dos homens, a do diabo e a de Deus, não será exagerado afirmar que, quando Montini ascendeu ao sólio pontifício, essa assembleia plenária do episcopado católico se encontrava ainda na fase dos homens, senão mesmo na do diabo, o qual é, segundo a etimologia, aquele que divide. Com efeito, os temas a debater na aula conciliar eram objecto das mais acesas discussões pelos padres conciliares e pelos peritos teológicos. Apesar da confusão reinante, nomeadamente entre os fiéis católicos, Paulo VI logrou levar a bom porto o concílio ecuménico, sem ceder no que à ortodoxia doutrinal dizia respeito, nem inviabilizar o necessário aggiornamento eclesial.

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Paulo VI em Fátima - Arquivo Ecclesia

Coube também a Montini a ingrata missão de presidir aos destinos da comunidade católica durante o pós-concílio, talvez um dos tempos de maior turbulência na história contemporânea da Igreja. Apesar das magníficas constituições e decretos conciliares, o ambiente católico manteve-se agitado durante alguns anos: o experimentalismo litúrgico e pastoral foi, de algum modo, responsável pelos milhares de padres e religiosos que se laicizaram. A profunda crise dos anos 70 foi vivida na Igreja universal com dramática intensidade, de que são expressões opostas o tradicionalismo de Mons. Marcel Lefebvre e a teologia da libertação, de inspiração marxista.
Foi certamente providencial o magistério de Paulo VI, pois não se pode negar o carácter profético de algumas das suas encíclicas, que ainda hoje são uma referência doutrinal em temas tão relevantes e sensíveis como o celibato sacerdotal, o mistério da Eucaristia, o credo do povo de Deus e a doutrina social da Igreja.

Foi certamente providencial o magistério de Paulo VI, pois não se pode negar o carácter profético de algumas das suas encíclicas, que ainda hoje são uma referência doutrinal em temas tão relevantes e sensíveis como o celibato sacerdotal, o mistério da Eucaristia, o credo do povo de Deus e a doutrina social da Igreja.

P. Gonçalo Portocarrero de Almada

Mas, talvez o mais emblemático texto do Beato Paulo VI seja a encíclica Humanae vitae, cujo cinquentenário agora ocorreu. Contrariando a maioria dos peritos e até uma parte considerável do episcopado, o então Papa, ao mesmo tempo que se opôs ao aborto e introduziu o conceito de paternidade responsável, declarou ilícitos os métodos anticoncepcionais não naturais. Esta tese, confirmada depois pelos seus sucessores na cátedra de Pedro, sobretudo pelas magistrais catequeses de São João Paulo II sobre a teologia do corpo, é já um princípio clássico da teologia moral e da pastoral católica. Não é de estranhar, portanto, que no Sínodo convocado e presidido pelo Papa Francisco em 2014, se tenha reafirmado, por 167 votos contra 9, “a mensagem da encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na apreciação moral dos métodos de regulação da natalidade”.
Vem a propósito recordar um episódio relatado por um político europeu, já falecido. Tendo sido recebido por Paulo VI, este estadista católico teve o atrevimento de perguntar ao Papa se, no seu magistério pontifício, alguma vez tinha tido consciência da inspiração do Espírito Santo. Montini ficou algo surpreendido com a pergunta e, depois de uns instantes de reflexão, disse:

– Sim, quando assinei a Humanae vitae!

Apesar da confusão reinante, nomeadamente entre os fiéis católicos, Paulo VI logrou levar a bom porto o concílio ecuménico, sem ceder no que à ortodoxia doutrinal dizia respeito, nem inviabilizar o necessário aggiornamento eclesial.

P. Gonçalo Portocarrero de Almada

Nada mais nem nada menos do que a mais contestada, mais polémica e mais controversa de todas as encíclicas! Apesar disso … ou, melhor dizendo, precisamente por isso!
Paulo VI, como é timbre dos verdadeiros profetas, mais do que um homem do seu tempo, foi um homem de Deus, ou seja, um homem de todos os tempos. Teve a lucidez e a audácia dos autênticos pastores, que não cedem às modas passageiras, nem se deixam levar pelo aplauso fácil das maiorias dominantes ou do que é, em cada momento, política ou mediaticamente mais correcto. E, numa questão de fé e de moral, contrariando bispos e teólogos e frustrando ingénuas expectativas, fez uso, com prudência e coragem heróicas, da sua suprema autoridade eclesial.

Não foi por acaso que o Papa Francisco beatificou o Papa Paulo VI na liturgia que assinalou também, há já quatro anos, a conclusão do Sínodo extraordinário sobre a família. No esteio do Papa da Humanae vitae, também Francisco se assumiu, nessa celebração, como guardião supremo da fé da Igreja e da tradição apostólica: “O Papa, neste contexto, não é o senhor supremo, mas sim um supremo servidor: o servus servorum Dei [o servo dos servos de Deus]; o garante da obediência e da conformidade da Igreja à vontade de Deus, ao Evangelho de Cristo e à Tradição da Igreja, deixando de lado todo arbítrio pessoal”.

 

Foto de capa: Paulo VI em Fátima com Ir. Lúcia Arquivo Ecclesia

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.