Para quando um compromisso constitucional com a erradicação da pobreza?

A consagração de uma nova tarefa constitucional teria a virtude de tornar juridicamente vinculante o princípio de que o cuidado para com os mais pobres é assumido como um dever do Estado.

Num mundo em rápida mudança e cada vez mais individualista, urge dotar os mais frágeis de trunfos que possam ser jogados a seu favor, num jogo em que maiorias políticas circunstanciais ameaçam pôr em causa os seus direitos. É, portanto, urgente o compromisso com o cuidado para com os mais pobres e a plena erradicação da pobreza. Em Portugal, este empenho não pode deixar de ser assumido ao mais alto nível legislativo, ou seja, pela Constituição.

É tempo de pedir um pacto de regime para incluir o tema da pobreza na Lei Fundamental. E para tanto, não é necessária uma revisão profunda da mesma, basta uma revisão do artigo 9.º com introdução de uma nova alínea que passe a estabelecer que:
“[São tarefas fundamentais do Estado:] […] Proteger especialmente os mais pobres, comprometendo-se com o respeito incondicional dos seus direitos fundamentais e com a progressiva erradicação da pobreza”.

A consagração de uma nova tarefa constitucional teria, antes de mais, a virtude de tornar juridicamente vinculante o princípio de que o cuidado para com os mais pobres é assumido como um dever do Estado, evoluindo da ideia de que a ajuda dada pela sociedade civil é a solução para o problema da pobreza.

Para além disso, a assunção de um compromisso constitucional com o respeito incondicional dos direitos dos mais pobres clarificaria, de vez, que o reconhecimento pleno da cidadania não pode depender do acesso a rendimento.

Em Lisboa, por exemplo, perante a sinalização do incómodo das comunidades em relação a alojamentos de sem-abrigo, ou em relação a pedintes na rua, urge ponderar o direito de livre circulação e permanência de todos no espaço público. Para estes problemas, não basta uma resposta voluntarista apressada (a qual conduz, as mais das vezes, a frustração que alimenta radicalismos). É necessária a criação de respostas públicas estruturadas, assentes no respeito incondicional dos direitos, capazes de oferecer proteção (e soluções de integração) a quem está fragilizado e simultaneamente a todos os que com eles dividem o espaço público.

Em Lisboa, por exemplo, perante a sinalização do incómodo das comunidades em relação a alojamentos de sem-abrigo, ou em relação a pedintes na rua, urge ponderar o direito de livre circulação e permanência de todos no espaço público. Para estes problemas, não basta uma resposta voluntarista apressada (a qual conduz, as mais das vezes, a frustração que alimenta radicalismos). É necessária a criação de respostas públicas estruturadas, assentes no respeito incondicional dos direitos, capazes de oferecer proteção (e soluções de integração) a quem está fragilizado e simultaneamente a todos os que com eles dividem o espaço público.

Nos tempos que correm, é ainda imprescindível uma reflexão lúcida e comprometida, com o respeito dos direitos de todos, sobre a tendência de maior penalização dos mais pobres, responsável pela criação de círculos viciosos que conduzem ao crime e à prisão. Tendência que se manifesta nos condicionamentos criados sobre os mais pobres, através de uma vigilância policial mais apertada, na criação de esquemas de prestações sociais pouco generosos e com um quadro sancionatório demasiado gravoso e, ainda, na maior incidência de aplicação de penas de prisão às pessoas com menor rendimento, pela incapacidade de pagarem multas substitutivas das mesmas.

A exigência pelo respeito incondicional dos mais pobres obrigaria também o Estado a levar mais a sério o direito ao rendimento mínimo, pondo de lado preconceitos ideológicos e fake news relativas a um abuso generalizado do recurso ao mesmo. Sobretudo atendendo a que, no contexto comparativo europeu (sim, o rendimento mínimo não é uma bizarria portuguesa), as falhas desta prestação nos deixam muito mal colocados, seja pelas enormes restrições quanto à elegibilidade dos beneficiários e quanto à cobertura, seja pelo nível de apoio “muito inadequado” que oferece para uma vida condigna.

A norma que propomos introduzir na Constituição – por efeito ainda do segmento do respeito incondicional dos direitos – teria igualmente o sentido de tornar obrigatória a alocação de verbas orçamentais em favor dos mais pobres, evidenciando o consenso que deve existir no reconhecimento de uma obrigação pública de acorrer a situações de extrema necessidade, sem se poupar a esforços. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem sido, de resto, perentório ao esclarecer que um Estado comprometido com o respeito dos direitos fundamentais não se pode furtar à assistência de emergência, nem mesmo invocando dificuldades financeiras.

Finalmente, o segmento da norma constitucional que se propõe, relativo à progressiva erradicação da pobreza, teria a virtude colocar o cumprimento dos deveres de erradicação da pobreza sujeito ao regime das normas constitucionais de realização progressiva, com a consequência de fazer com que os esforços feitos fossem ficando a salvo de intuitos revisionistas, que atuassem com o objetivo de voltar atrás nas proteções públicas já concedidas.

Poderá dizer-se que a inclusão desta norma constitucional não pode ser olhada como receita mágica para a erradicação da pobreza. E que talvez seja um passo curto em relação a esta luta que é difícil de travar. No entanto, sem que o Estado mostre o seu empenho, e sem um compromisso político assumido de forma transversal de que vai trabalhar de forma contínua e progressiva para acabar com a pobreza, nada mudará de certeza. Vale a pena, portanto, arriscar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.