Os usos e abusos do “Conservadorismo”

Os conservadores não devem assim perder a oportunidade de liderar um programa reformista moderado que assegure uma repartição mais justa da riqueza e das oportunidades.

O termo “conservador” é utilizado em contextos diversos e, não raras vezes, com alguma ambiguidade. Porque é que os partidos ditos conservadores são muitas vezes os mais reformistas em matéria de política económica e social? Como se explica que os partidos progressistas ou revolucionários se cinjam frequentemente a uma ortodoxia inflexível? No texto que se segue procurarei distinguir três interpretações possíveis desta noção, nomeadamente:
(1) conservadorismo como conformidade em relação a um cânone ou dogma;
(2) conservadorismo como conjunto de orientações morais relativamente a determinados temas da vida em sociedade;
(3) conservadorismo enquanto atitude específica face à mudança.A tese que defenderei é que (3) não pressupõe (1) nem (2). Por outras palavras, será plausível abraçar a metodologia conservadora sem abraçar o seu sistema de valores.

Comecemos pela primeira categoria. Ser-se conservador pode implicar uma fidelidade cega a um cânone, o qual prescreve uma maneira “certa” de fazer as coisas. Segundo esta lógica, a validade das escolhas reside na sua conformidade com o dogma. Aqui a moral é lei, mais que virtude; a política é experiência, mais que visão de futuro. Em regra, o cânone é imutável, pelo que quaisquer novos desafios devem por ele ser esclarecidos e regulados. O futuro escreve-se assim à luz do passado. No dia-a-dia das instituições, decide-se de determinada forma porque sempre se fez assim. Conservadorismo deste tipo não é de esquerda nem de direita: pode encontrar-se tanto no Supremo Soviete da URSS como entre muitos ultraliberais norte-americanos.

Por sua vez, o conservadorismo poderá preconizar uma conceção substantiva da vida em sociedade, radicada num sistema de valores. Com efeito, a maioria dos manuais de Ciência Política traça o perfil conservador em redor de determinadas preferências relativamente à família, à justiça social, à educação e à imigração. Tais preferências decorrem de uma ideia de comunidade que é geralmente definida em termos culturais ou étnicos e não constitui objeto de escolha (por oposição ao modelo republicano, em que a cidadania é entendida numa lógica de tipo contratualista). Aqui a validade das escolhas assenta na sua congruência. A resposta aos novos desafios deverá preservar o sistema de valores tradicional, ainda que o formato dessa resposta não esteja pré-determinado por um cânone. Este tipo de conservadorismo é característico de alguns partidos políticos Europeus.

Se a comunidade política não pode ser escrava das suas tradições e da sua cultura, a lei e as políticas públicas também não devem ser objeto de experimentação social.

Finalmente, o conservadorismo pode ser entendido como uma atitude face à mudança. Com efeito, um conservador pode ser alguém que é particularmente cauteloso face a cenários de alteração do status quo. Não existe nele uma aversão intrínseca à mudança, mas sim uma necessidade de justificar cuidadosamente as reformas a efetuar com argumentos que perdurem no tempo. Mudar apenas sob pretexto de servir uma determinada vanguarda intelectual, ou para alcançar ganhos políticos de curto-prazo, afigura-se inaceitável. Esta aceção coloca-nos perante uma metodologia conservadora, e não um sistema de valores, em que a validação das escolhas é feita através do teste à necessidade de mudança. Encontramos este tipo de conservadorismo em alguns sistemas políticos onde existem fortes limitações aos poderes executivos do Governo, como no caso de certos Parlamentos bicamerais.

À luz desta distinção, um conservador “metodológico” não apresentará necessariamente uma posição axiológica conservadora face a temas como a família, a justiça social ou a imigração. Para ele, a questão essencial está em perceber de que maneira pode o legislador suprir novas necessidades, minimizando os riscos de rutura económica e fragmentação social. Os conservadores no método são particularmente avessos a uma tipologia de agenda política: mudar porque sim, mudar por mudar. Se a comunidade política não pode ser escrava das suas tradições e da sua cultura, a lei e as políticas públicas também não devem ser objeto de experimentação social. Antes de reformar, é necessário examinar diferentes cenários. As virtudes centrais do conservador “metodológico” são assim a prudência e o bom senso, qualquer que seja credo ideológico que ele professe. O oposto do conservadorismo como metodologia não é portanto o socialismo, mas o radicalismo.

O oposto do conservadorismo como metodologia não é portanto o socialismo, mas o radicalismo.

Em jeito de conclusão, pensemos num exemplo concreto que ilustra estas distinções: as exigências do movimento dos coletes amarelos no que respeita à justiça social. Uma conservadora nos valores como Margaret Thatcher provavelmente lidaria com um desafio à ordem social deste género com mão de ferro, à semelhança do que fez aquando da longa greve dos mineiros Ingleses na década de 1980. O mesmo se aplica à intransigente resposta de Ronald Reagan à famosa greve dos controladores aéreos, que resultou no despedimento compulsivo da maioria dos grevistas. Ora, um conservador metodológico, ainda que condenando veemente a violência e reconhecendo o irrealismo de muitas das reivindicações dos Gilets Jaunes, não pode deixar de olhar para este desafio à ordem social vigente como mais um grito de desespero das periferias da riqueza e da inclusão. O carácter da resposta – ou a falta dela – aos sucessivos clamores por uma nova ordem económica mundial, oriundos de diversas geografias, irá condicionar a estabilidade dos regimes democráticos e as perspetivas da paz.

Os conservadores não devem assim perder a oportunidade de liderar um programa reformista moderado que assegure uma repartição mais justa da riqueza e das oportunidades, inteiramente justificada pelo grau de interdependência económica decorrente da globalização. Existem razões objetivas para escrutinar o status quo e ponderar novos rumos. Um decisor prudente deve dar-lhes a atenção que merecem.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.