Onde se fala em avós, afectos e direitos

Porque falar sobre avós e netos também pode ser – e é - um acto de AMOR, o mesmo que o Senhor Deus nos deu para ofertar sem saldos ou meias-palavras…

A cadeira de baloiço embala o sono da avó.

E junto com ela as histórias que nos fazem ser.

Vai e vem, você em mim.

Mel Fronckowiak

 

Quero falar de amor avoengo. De avós e de netos.

Sabemos que através da Lei nº 84/95, de 31-8 (que alterou o Código Civil, doravante CC), foi aditado a esta compilação normativa o artigo 1887º-A:

«Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes.»

Com a entrada em vigor deste artigo, a criança passou a ser titular de um direito autónomo ao relacionamento com os avós e com os irmãos, que podemos designar por direito (amplo) de visita — há um direito desta criança ao convívio com os avós e com os irmãos, que não pode ser cerceado de forma injustificada pelos pais.

Segundo o regime anterior, que não previa solução semelhante, a única possibilidade de atribuir à criança e aos avós um direito a relacionarem-se entre si, independentemente da vontade dos pais da primeira, era através do artigo 1918º do CC, ou seja, sempre que a descontinuidade dessas relações redundasse para a criança numa situação de perigo para o seu desenvolvimento equilibrado ou para a sua educação.

A jurisprudência portuguesa, quando se não verificava nenhuma das hipóteses do artigo 1918º, negava aos avós o direito de obter a guarda da criança ou o direito de visita.

Hoje em dia, os avós têm legitimidade para acionar em tribunal o artigo 1887º-A do CC (processualmente, a forma mais correcta de exercer este direito por via de uma ação — e não nos esqueçamos que, nos termos legais, a todo o direito corresponde uma ação — será a ação tutelar comum prevista no artigo 67º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, doravante RGPTC).

Trata-se agora de uma providência tutelar cível prevista no artigo 3º, alínea l) do dito RGPTC.

Na verdade, este artigo 1887º-A vem introduzir expressamente um limite ao exercício das RP, proibindo os pais de impedir, sem justificação, os filhos de se relacionarem com os ascendentes ou irmãos.

Trata-se de um limite ao direito dos pais à companhia e educação dos filhos (artigo 36º, n.os 5 e 6, da nossa Constituição) e a decidirem, como bem entenderem, com quem se pode relacionar a criança e o lugar destes encontros, facetas dos direitos de guarda e de vigilância – atente-se também aqui ao princípio do “primado da continuidade das relações psicológicas profundas”, previsto no 4º/g) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável aos processos tutelares cíveis pelo artigo 4º /1 do RGPTC.

A esta norma está subjacente uma presunção de que o convívio da criança com os ascendentes e irmãos é positivo para ela e necessário para o harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.

Em caso de conflito entre os pais e os avós da criança, o critério para conceder ou negar o direito de visita é o interesse da criança.

A intervenção do Estado na família, a fim de decretar o direito de convívio da criança com os avós e irmãos, já não está condicionada aos requisitos do artigo 1918º do CC, não sendo necessário provar a incapacidade dos pais para educar o filho ou uma situação de perigo para este.

A intervenção do Estado na família, a fim de decretar o direito de convívio da criança com os avós e irmãos, já não está condicionada aos requisitos do artigo 1918º do CC, não sendo necessário provar a incapacidade dos pais para educar o filho ou uma situação de perigo para este.

Consequentemente, para ser decretado um direito de visita da criança relativamente aos avós ou aos irmãos, basta que tal medida esteja de acordo com o seu supremo interesse, ou seja, produza efeitos favoráveis para aquela.

A lei estabelece uma presunção de que a relação da criança com os irmãos e com os avós é benéfica para esta.

Os pais, se se quiserem opor com êxito a este convívio, terão de invocar motivos justificativos para tal proibição.

A decisão judicial em causa resulta de uma ponderação de factores (vontade da criança, afecto entre a criança e os avós ou entre a criança e os irmãos, qualidade e duração da relação anteriormente existente entre estes, assistência prestada pelos avós ou pelos irmãos à educação da criança, benefícios para o desenvolvimento da personalidade da criança e para a sua saúde e formação moral resultante da relação com os irmãos e com os avós, efeitos psíquicos e físicos do corte das relações da criança com os avós ou com os irmãos), tendo a criança direitos constitucionalmente protegidos que entram em conflito com os direitos dos pais, devendo prevalecer os direitos da primeira, no caso de os pais não apresentarem razões suficientemente fortes para proibir a relação do filho com os avós, dado que a finalidade principal do exercício das Responsabilidades Parentais é, sabemo-lo bem, promover o interesse da criança.

Recentemente, tem-se dado guarida a pretensões de outros familiares da criança – tios – ou até de pessoas de referência da criança, no que tange a afectos (padrinhos, madrastas e padrastos), com o decisivo argumento de que do artigo 1887º-A do CC não se extrai que relações distintas das aí contempladas, ou outros afectos ainda que relativos a terceiros, não mereçam relevo regulatório, até por força de uma interpretação extensiva desse normativo.

O relevante aresto do Tribunal da Relação do Porto de 7/1/2013 (Pº 762-A/2001.P1) conferiu legitimidade a uns tios para reclamarem o direito ao convívio com um sobrinho a quem estavam muito ligadas, à luz do artigo 1887º-A do CC.

Como aí se refere:

«Se o convívio com os tios não faz parte do núcleo primordial do conteúdo da responsabilidade parental (por conseguinte, se o progenitor não está onerado com o vínculo de não obstaculizar o convívio com os tios, como o está para com os irmãos e ascendentes), isso não pode ter o sentido de que, então nunca àqueles parentes é passível de assistir essa possibilidade. Já que ela no concreto pode existir.

(…)

Em regra, a criança há-de poder conviver com os parentes que o artº 1887º-A elenca; mas as condições concretas podem até fazer inferir que o não deva. Ao invés nada há no conteúdo do direito-dever parental que estabeleça um contacto com outras pessoas (com tios designadamente); mas podem as condições concretas ser conducentes à adequação desse convívio, que então deve existir. É no fundo, sempre o interesse da criança a condicionar a conformação da realidade concreta de cada caso, isto é, são os factos concretos que se permitam apurar, aqueles que hão-de sustentar a definição das providências adequadas que hajam de ser decretadas».

Mais pessoas de referência podem surgir, assim se entenda realmente o interesse da criança em não se privar do contacto de certos homens e mulheres que passaram pela sua vida e que, por algum incidente de percurso, podem deixar de o fazer.

Assim, podemos concluir que, apesar de a lei ter optado, de forma expressa, por fixar taxativamente as pessoas abrangidas pela proteção jurídica conferida pelo art. 1887º-A do CC, a verdade é que hoje em dia se justifica, à luz da consideração dos direitos fundamentais da criança, a sua extensão à grande família psicológica da criança, regulando-se os convívios da criança com outras pessoas de referência afectiva para ela, sem ser no estrito comando do artigo 1918º do CC.

Porque falar sobre avós e netos também pode ser – e é – um acto de AMOR, o mesmo que o Senhor Deus nos deu para ofertar sem saldos ou meias-palavras…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.