Igreja “em saída” ou “de saída”?

À Igreja foi negado o seu legítimo e originário direito ao culto público? Talvez, mas a Igreja, que viveu os seus primeiros três séculos na clandestinidade, soube aceitar essa humilhação em nome de um bem maior: a paz social.

Muito tem sido dito sobre a resposta da Igreja católica à pandemia. Sendo uma experiência relativamente inédita, a Igreja portuguesa teve que se adaptar às circunstâncias, sujeitando-se às recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS) e às indicações emanadas do poder político.

Tratando-se de uma questão eminentemente prudencial, é natural que haja diversidade de opiniões, mas é unânime o parecer de que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) primou por uma grande prudência. Com efeito, logo que soou o alarme, o episcopado entendeu conveniente suspender as celebrações comunitárias, porque podiam representar um perigo para a saúde pública.

É fácil agora dizer que houve exagero nessa medida, mas se assim não tivesse sido e houvesse, por esse motivo, vítimas a lamentar, talvez os que agora lamentam o alegado excesso de prudência seriam os primeiros a acusar de temeridade as autoridades eclesiais… E a comunicação social, sempre tão atenta a tudo o que possa ser apontado à Igreja, não perderia a ocasião para verberar a sua suposta imprudência.

Pedro Mexia, na revista do Expresso de 20-6-20, queixa-se de que “a Igreja tem hoje um discurso religioso privado e um discurso público laico, mas não tem um discurso público religioso.” Esta afirmação parece esquecer que a questão era, como é óbvio, sanitária e, portanto, a resposta da Igreja a esse desafio tinha, obviamente, que se situar ao mesmo nível. Por outro lado, tudo o que é humano é religioso e, por isso, quando a Igreja defende a vida, ou se empenha numa questão de saúde pública, também está a proferir um discurso religioso. Jesus Cristo não se limitou a dar conselhos espirituais: também deu de comer às multidões famintas e curou muitos doentes.

Por outro lado, tudo o que é humano é religioso e, por isso, quando a Igreja defende a vida, ou se empenha numa questão de saúde pública, também está a proferir um discurso religioso.

A opinião pública, mesmo em países de tradição cristã, já não é maioritariamente religiosa e, por isso, a resposta da Igreja à pandemia devia ter sido formulada em termos de bem comum, como efetivamente aconteceu, até porque as questões que são do exclusivo interesse dos católicos, como o modo de celebração da eucaristia ou da distribuição da sagrada comunhão, foram esclarecidas internamente, no momento próprio. Assim sendo, não se percebe em que sentido as declarações da CEP, ou dos bispos, deveriam ter sido, segundo o autor, mais ‘religiosas’ e menos ‘laicas’.

É verdade que o Estado, em várias ocasiões, desconsiderou a Igreja católica, quer nos entraves à ação dos capelães hospitalares, como os próprios publicamente se queixaram, quer em relação às celebrações religiosas, se comparadas com as cerimónias públicas patrocinadas pelos órgãos de soberania, partidos políticos ou centrais sindicais. Não é fácil compreender que se faça uma sessão comemorativa do 25 de Abril, na Assembleia da República; ou um espetáculo humorístico, no Campo Pequeno, com a presença do Presidente da República e do Primeiro-Ministro; mas que não se celebre comunitariamente a Páscoa, mesmo em templos suficientemente amplos e observando as medidas sanitárias prescritas. Também não se explica por que motivo a CGTP se pôde manifestar, no 1º de Maio, ou se promoveu uma manifestação pública contra o racismo, mas os fiéis não se puderam reunir no recinto de Fátima, no aniversário da primeira aparição mariana.

Se o Estado se tivesse abstido de qualquer celebração, teria tido autoridade moral para assim exigir à Igreja, mas não é eticamente aceitável que se tenha permitido a si mesmo o que não consentiu à Igreja.

Se o Estado se tivesse abstido de qualquer celebração, teria tido autoridade moral para assim exigir à Igreja, mas não é eticamente aceitável que se tenha permitido a si mesmo o que não consentiu à Igreja. Mais grave do que esta duplicidade é que tenha autorizado manifestações a instituições – partidos políticos, centrais sindicais e organizações cívicas –  muito menos relevantes do que a religião maioritária. Não faz sentido permitir o que é supérfluo – como uma sessão comemorativa, uma manifestação, ou um espectáculo – e proibir o que, por se tratar do exercício de um direito fundamental, como é a liberdade religiosa, é necessário e essencial; nem autorizar a poucos o que a muitos não se consentiu.

Segundo Pedro Mexia, “os poderes públicos não consideraram a prática religiosa uma ‘necessidade essencial; embora não tenha hostilizado a religião, o Estado tratou-a como qualquer outra actividade, colocando-a ‘na mesma ordem do ioga, da meditação ou da leitura de Em Busca do Tempo Perdido: um passatempo solitário no recato de um apartamento.’ O que significa que a prática religiosa é oficialmente entendida como uma actividade individual e apenas eventualmente colectiva.

À Igreja foi negado o seu legítimo e originário direito ao culto público? Talvez, mas a Igreja, que viveu os seus primeiros três séculos na clandestinidade, soube aceitar essa humilhação em nome de um bem maior: a paz social. A atuação da CEP, que não se compara à atividade dos partidos políticos, nem das centrais sindicais, obedece a critérios de colaboração com o poder público, em tudo o que respeita ao bem comum.

É verdade que a hierarquia, ao permitir que a DGS determinasse como é que os católicos deviam comungar, parecia estar a alienar uma sua competência própria e específica, em benefício do Estado, que não pode imiscuir-se no que respeita, única e exclusivamente, à Igreja. Um tal precedente levou até alguns presidentes de junta ao cúmulo de querer determinar quantos fiéis poderiam assistir às celebrações na sua freguesia, como se a autoridade pública, também ao nível autárquico, tivesse substituído a hierarquia eclesial.

Na sua substância, as indicações da DGS eram certamente pertinentes; mas, do ponto de vista formal, teria sido preferível que a DGS propusesse à CEP as medidas que julgasse convenientes e que fosse o episcopado, e não a DGS, a determinar as alterações relativas ao culto, até por uma questão de eficácia. Com efeito, os párocos, como quaisquer outros cidadãos, devem acatar as indicações da DGS mas, em questões litúrgicas, só devem obediência às legítimas indicações do seu bispo e do episcopado.

Mesmo em relação ao discurso público da Igreja, não é exato que não tenha sido religioso: recorde-se, a este propósito, a impressionante liturgia presidida pelo Papa Francisco, numa praça de São Pedro deserta; ou a emocionante celebração em Fátima, pelo Cardeal D. António Marto, nos dias 12 e 13 de maio. Não só a CEP, como também os bispos e sacerdotes, desdobraram-se, graças às novas tecnologias, em iniciativas apostólicas, suprindo, com grande criatividade pastoral, o distanciamento social.

Não obstante tudo o que se fez e tem feito, que foi e é muito, talvez a Igreja pudesse ter sido ainda mais ousada e criativa na prática da caridade, insistindo no apoio religioso aos doentes, desenvolvendo uma pastoral de proximidade com os que estavam confinados em suas casas; atrevendo-se a prestar, mesmo com risco da própria vida, tal como fizeram os agentes sanitários, assistência espiritual nos lares, etc.

A quem disse que a Igreja deveria ter dito “qualquer coisa católica” nesta ocasião, seria oportuno recordar que a Igreja disse muita “coisa católica”: foram inúmeras as eucaristias transmitidas pela internet; renovaram-se em muitos santuários as consagrações ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria; oficiaram-se muitas bênçãos com o Santíssimo Sacramento; promoveram-se bastantes vigílias de oração e recitações on-line do terço de Nossa Senhora, redescobriu-se a família como igreja doméstica, etc. Poder-se-ia ter feito mais e melhor? Com certeza, mas se, por hipótese, a Igreja tivesse querido tirar dividendos religiosos da pandemia, não teria sido acusada de oportunismo, ou até de populismo?

Não obstante tudo o que se fez e tem feito, que é muito, talvez a Igreja pudesse ter sido ainda mais ousada e criativa na prática da caridade, insistindo no apoio religioso aos doentes, desenvolvendo uma pastoral de proximidade com os que estavam confinados em suas casas. Como fizeram os agentes sanitários, mesmo com risco da própria vida, poderia ter prestado assistência religiosa nos lares, etc. Em resumo, poderia ter sido uma Igreja mais ‘em saída’, como pede o Papa Francisco, e não ‘de saída’, como erroneamente foi julgada, por alguns, a sua atitude prudencial.

A Igreja não obedece a dois senhores: o seu propósito é servir a Deus e não agradar ao mundo. O seu programa pastoral é, há já dois mil anos, o mesmo que São Paulo prescreveu a Timóteo: “prega a palavra, insiste a tempo e fora de tempo, repreende, corrige, admoesta com toda a paciência e doutrina, porque virá tempo em que muitos não suportarão a sã doutrina” (2Tm 4, 2-3).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.